A dispersão polifónica de Mário de Sá-Carneiro

A vida toda numa espiral contínua de sons e cores para enfrentar “a dor de ser quase”

O centenário da morte de Mário de Sá-Carneiro surge na sequência do centenário da publicação do Orpheu 1 e Orpheu 2 que, na poesia, na ficção, no teatro, nas artes plásticas, no design e até na área da tipografia introduziram uma transformação radical.

Se excetuarmos os casos de Cesário Verde, António Nobre, Camilo Pessanha e Pascoais – que continuaram a sobreviver – o grupo e a geração do Orpheu, no princípio do século XX, tiveram decisiva influência e prolongaram, o ímpeto da Geração de 70 que, na segunda metade do século XIX, desencadeou a polémica Bom Senso e Bom Gosto contra o elogio mútuo, a subserviência oficial e oficiosa, o arcadismo cediço e o sentimentalismo piegas. Para incutir na sociedade portuguesa, no universo das ideias e da criação intelectual, uma opinião pública capaz, também promoveu as Conferências do Casino. Exigiram reformas estruturais, para transpor fatalidades remotas, o egoísmo dos grupos, a vulgaridade literária, o conformismo artístico, as pequenas lutas partidárias e a mediania politicamente correta.

Embora noutra conjuntura politica e social, com outras tendências ideológicas e outras componentes estéticas, o grupo e a geração do Orpheu apostou na urgência da mudança: nos Ultimatos de Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos, nos Manifestos de Almada Negreiros, na reinvenção formal e explosão cromática de Amadeo de Souza Cardoso.

Mário de Sá-Carneiro – uma das personalidades mais representativas do grupo e da geração do Orpheu – nasceu, na baixa pombalina, a 19 de Maio de 1890. Revive numa lápide na fachada do prédio número 93-95 da Rua da Conceição. É um dos grandes poetas de Lisboa. Porque nasceu em Lisboa, porque a referiu e assinalou na sua obra e porque ficou ligado às tertúlias de cafés e restaurantes, de teatros e livrarias que se integraram na História.

Filho único de uma família da alta burguesia, a mãe morreu quando tinha, apenas, dois anos. O pai foi trabalhar para Moçambique. Ficou com os avós paternos, na Quinta da Vitoria, em Camarate. Próximo e longe de Lisboa. Habitou a tranquilidade rústica das aldeias da antiga periferia. Descobriu a poesia em autores portugueses e estrangeiros. Reteve, para sempre, o contato íntimo com a natureza.

Foi educado por uma ama e perceptoras estrangeiras. Tornou-se um menino solitário e mimado.

Viu Paris, Roma e alguns locais da Suíça. Tinha pouco mais de 10 anos, ao viajar com o pai, através de vários países. Mas na encruzilhada de ruas, praças, avenidas, rios, lagos, palácios e jardins, ganhavam maior amplitude os traumas de uma criança repleta de carências que se vão agudizar no decurso da infância e de uma adolescência que nunca se completou.

Enquanto frequentava o liceu, em Lisboa, dedicou-se ao teatro. Foi ator e autor. O teatro despertou o fogo interior do poeta em busca de afirmação. Restituiu-lhe a vida que não estava nos livros e respondia a situações de ansiedade. Era o acordar da “dor de ser quase,”, “dor sem fim”; a contínua procura de “um golpe de asa”, de “um pouco mais de azul” para “ser além”.

O tempo do Orpheu é o tempo de aproximação com a Europa, de imposição da modernidade, do afrontamento às Academias; da primeira Grande Guerra Mundial e das sucessivas perturbações que atingiram o percurso e a consolidação da República implantada em Outubro de 1910, com a desagregação da Monarquia, a força da Carbonária, a resistência da Maçonaria e a velocidade do telégrafo.

Só que, em 1915, António Feliciano de Castilho chamava-se Júlio Dantas. Os conselheiros repetiam o Acácio ou o Pacheco. Com outros nomes e outras indumentárias. Fossem quais fossem as cartilhas e as vulgatas, os epígonos e os discípulos, prosseguiam os trajetos pessoais e institucionais.

Lisboa – 1912: Mário de Sá-Carneiro conhecera Fernando Pessoa e Almada Negreiros; colaborara com Fernando Pessoa, na revista A Águia, de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra; abandonara a Sorbonne para fazer o curso de Direito. Entregara-se à descoberta da cidade: “Perdi-me dentro de mim/porque era labirinto” (...) Para mim é sempre ontem, não tenho amanhã nem hoje:/ o tempo que aos outros foge/ Cai sobre mim feito ontem./ O Domingo de Paris/ lembra-me o desaparecido/ que sentia comovido/ os Domingos de Paris; porque um domingo é família, / é bem-estar, é singeleza/ e os que olham a beleza/não têm bem-estar nem família”.

As interrogações sucedem-se. Persiste a angústia. A fragilidade humana acentua-se com evidência: “Pobre menino ideal.../ Que me faltou afinal?/ Um elo? Um rastro? Ai de mim!...”(...) “Eu fui alguém que passou/ serei, mas já não me sou;/ não vivo, durmo o crepúsculo./ Álcool dum sono outonal (...) Castelos desmantelados,/ Leões alados sem juba”.

Voltou a Lisboa. Reencontrou nas tertúlias do Rossio, do Chiado e do Terreiro do Paço, Fernando Pessoa e Almada Negreiros e, também, colegas de liceu Alfredo Guisado, António Ferro e Luís de Montalvor que regressara do Rio de Janeiro com o projeto do Orpheu. Mário de Sá-Carneiro, em 1913, publicara o primeiro livro de poemas Dispersão, título e estigma da sua vida e da sua obra; e, a seguir, A Confissão de Lúcio e Céu em Fogo. Conciliou no discurso as polifonias e policromias da estética simbolista de Verlaine, Rimbaud e Mallarmé.

Pôs o melhor do seu empenho na edição e lançamento do Orpheu 1 e Orpheu 2 e, ainda, de um Orpheu 3, cuja publicação se malogrou por não haver dinheiro. O pai, entretanto, reduziu-lhe a mensalidade. Apesar disto retornou a Paris: “Paris da minha ternura/ (...) Minha cidade com rosto,/ minha fruta mal madura.../ Mancenilha e bem-me quer./ Paris – meu lobo e amigo – / quisera dormir contigo,/ ser todo a tua mulher”.

Sem nunca exercer qualquer profissão, sempre dependente da família, Mario de Sá-Carneiro dispersa-se na escrita, no convívio, nas peregrinações às livrarias e aos teatros. Fica horas e horas no café, a ver passar os outros, a sentir o passar do tempo: “Minha mesa no café” (....) sobre ela descanso os braços/ numa atitude alheada,/ buscando pelo ar os traços/ da minha vida passada”.

Dia após dia aumentava o mal-estar. Emergiam obsessões, fobias, receios da própria ansiedade: “À minha vida não cessa/ de ser sempre a mesma porta,/ eternamente a abanar./” (...) “Às cambalhotas desato,/ e salto sobre o piano.../Vai ser bonita a função!/ Esfrangalho as partituras. /Quebro toda a caqueirada,/ arrebento à gargalhada,/ e fujo pelo saguão”.

Todos os sinais de aflição conduziram a por termo à vida. Suicidou-se no Hotel Nice, a 26 de Abril de 1916. Há muito que se identificara com a determinação de suicidas: Antero, Camilo, Mouzinho de Albuquerque e, entre os mais próximos, Manuel Laranjeira. A ideia fixa do suicídio dominou mais de metade da sua existência. Assistiu ao suicídio de um amigo íntimo, colega de liceu, Tomaz Cabreira, co-autor do primeiro livro a peça Amizade.

Manuel Laranjeira – que se lançou ao mar de Espinho – exclamava: “o desejo de viver,/ já não tem asas/ e a vida dá vontade de morrer”. Era uma das expressões do sentimento trágico que Miguel Unamuno considerou uma das características, da alma portuguesa. Sá-Carneiro quis atirar-se aos carris do Metro. Depois comprou, em várias farmácias, 5 frascos de estricnina. Tomou-os. Vestiu-se de smoking, estendeu -se na cama do quarto onde vivia. Convocou um amigo para assistir ao estertor. Escreveu a Fernando Pessoa a comunicar a decisão inexorável. Para, à distância, acompanhar esse ato de desespero. Foi a 26 de Abril de 1916, no hotel Nice, no boulevard Pigale. Foi há cem anos que hoje se completam.

O cadáver – escreveu José Araújo, uma das testemunhas – “inchou de uma maneira tal que todo o fato tinha rebentado; da boca e do nariz, olhos e ouvidos, saía um sangue preto e junto a isto um cheiro insuportável a decomposição”. O funeral, com alguns portugueses, no dia 29 de Abril, não foi para o Pére Lachaise. Seguiu para o cemitério de Patin. Os ossos acabaram na vala comum.

Todavia, a obra não resvalou no esquecimento.

Chegaram até nós as várias dimensões da poesia de Mário de Sá-Carneiro: na Dispersão, nos Indícios de Ouro, nas inúmeras cartas, em tudo ou quase tudo que escreveu se condensa na tragédia humana, literariamente, repartida numa espiral contínua de sons e cores para enfrentar “a dor de ser quase”.

 Pessoa impediu a morte do poeta. Enviou inéditos de Sá-Carneiro para as revistas do modernismo, após o OrpheuExílio, Centauro, Portugal Futurista, Athena, Contemporânea e, por último, Presença. Será ainda depois da morte de Pessoa (1935) que, através da Presença, se editou o livro póstumo Indícios de Ouro e se reeditou Dispersão.

A consagração de Mário de Sá-Carneiro não era possível sem Fernando Pessoa. Também o evocou num poema que nos diz um pouco do muito que os uniu: “como eramos um só, falando! Nós eramos como um diálogo numa alma.” (…) “Aí, em baixo, no Café Arcada – quase no extremo oeste” (…); “Aí onde escreveste aqueles versos/ do trapézio (…); “Aquilo tudo que dizes do Orpheu (…) “Hoje, falho de ti, sou dois a sós”.

O amigo verdadeiro não é só aquele que nos quer, nas horas boas e más, que nos estima e nos acompanha, sem nada exigir em troca. Os verdadeiros amigos são aqueles que sabem multiplicar as coisas boas e conseguem dividir as coisas más. São, regra geral, os grandes solitários que, muitas vezes sem darem por isso – ou, talvez, por isso mesmo – se encontram juntos. Tal e qual Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.

Jornalista e investigador; membro da Academia das Ciências

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