A bunda

Pergunta recente: “Conheces a Blaya?” Não me recordo a que propósito o nome (da minha cúmplice no colectivo musical Buraka Som Sistema) surgiu na conversa, mas a minha reacção foi soltar um lacónico “sim”. Talvez até nem tenha dito nada e optado por aquele encolher de ombros ou movimento de sobrancelhas de concordância, sem conseguir disfarçar o espanto que essa pergunta me havia causado.

Como assim, conheço a Blaya?, devolvi-lhe a questão a ela, mulher, lisboeta, classe média e cheia de mundo, preocupada com a humanidade e com a cultura de uma forma plural e generosa, frequentadora de seminários, conferências e soirées, onde, juntamente com o Chardonnay e a Touriga Nacional, é servido conhecimento, e que tanto acorda com o rio Tejo a desaguar-lhe pela janela dentro, como conhece intimamente o pôr do Sol que cai sobre o alto da Cova da Moura.

Na resposta, pronta e honesta, percebi que o óbvio para mim está tão longe do lisboeta comum que às vezes mais parece que vivo noutra cidade, noutro país. Vocês tocam mais lá fora do que cá dentro, certo? Como se a minha ausência do imaginário popular só pudesse ser colmatada com a minha presença nas Tardes da Júlia ou visitas matutinas ao programa do Goucha.

Faz pouco tempo que a Blaya lançou no mercado das aulas de dança o seu Pack Five Bundas. Olhei para o nome das suas aulas ao domicílio com divertida atenção, por reconhecer nele a forma como as mulheres da minha cidade vivem essa coisa da lusofonia. Sem os dogmas da multiculturalidade, sem panfletos e discursos abstractos e institucionalizados sobre a diversidade e integração. Quem diria que a mais interessante e desprendida manifestação cultural, no Portugal dos nossos dias, dessa luso-qualquercoisa, dessa nossa mestiçagem, fosse nada mais nada menos do que a bunda?

Para além de toda a carga simbólica que lhe atribuímos, de forma consciente ou não, a bunda é também um elemento unificador de classes: todas têm uma! E têm-na por causa dessa mistura de heranças genéticas romana, germânica, moura e árabe, que, ao longo dos séculos, foram ficando incutidas nos povos destas terras lusas, a par do legado da língua, da religião, das ciências e da matemática. Têm-na também por causa dessas viagens lideradas, entre outros, por Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão. Toda uma herança histórica que a mulher lusófona transforma, com as suas ancas generosas, em poesia ambulante e que eu, confesso-me, continuo a gostar de olhar, ainda que discretamente.

Sugerir correcção
Comentar