O Anjo Exterminador

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A casa fica na Calle de la Providencia, a Rua da Providência. Mas é uma providência mais demoníaca do que divina. Em vez de estarem sujeitas a uma força benigna e metafísica, as personagens de O Anjo Exterminador dependem de si mesmas, das suas próprias forças e fraquezas quase inteiramente malignas.

El Angel Exterminador (1962) é o meu Buñuel favorito. Há quem prefira os inícios experimentais surrealistas ou as obras europeias finais, e tudo isso é fabuloso, mas nenhuma dessas fases diminui o espantoso Buñuel mexicano (1947-1964). Imaginem uma telenovela escrita por um génio perverso, e ficam com uma ideia. Buñuel pegou em melodramas convencionais e farfalhudos e tornou-os acutilantes e degenerados, inesquecíveis. O que eu gosto de Susana (1951), El (1953), Ensaio de Um Crime (1955), Nazarín (1958) ou Simão do Deserto (1964), cinema para as massas que é também cinema mordaz e anarquista.

O Anjo Exterminador é talvez o melhor Buñuel dessa época, em parte porque contou com um produtor, Gustavo Alatriste, que deu ao cineasta os meios suficientes e total liberdade criativa. O conceito central conta-se numa frase: um grupo de convivas que não consegue sair de uma casa. Não há explicações, nem alegorias, nem uma progressão narrativa clássica, às vezes nem "cenas" propriamente ditas, apenas uma sucessão de imagens densamente alusivas, oníricas, mais diálogos absurdos, divertidos e agrestes, e uma gloriosa verrina social.

Os 20 mexicanos da boa sociedade, eles de smoking e chapéu alto, elas de vestido comprido e estola, vão cear a um palacete depois de uma noite na ópera. É um grupo heterogéneo, sem protagonistas nem secundários: há um militar, uma cantora lírica, um homossexual, um casal de noivos, um médico, um maestro, uma doente cancerosa, vários maçons. E há uma virgem (alguém comenta: "Talvez seja uma perversão"). A noite começa normalmente, com um lauto banquete e conversa de sociedade. E quando a anfitriã, referindo-se à ceia, alerta para uma inversão da "ordem natural do menu", ainda nem sabemos o que nos espera.

Mas Buñuel começa logo com boicotes narrativos, em cenas repetidas, réplicas inconvenientes e imagens insólitas, como fará mais tarde em O Charme Discreto da Burguesia. Um homem é repetidamente apresentado a outro, até que de repente já são velhos amigos. Uma doente beija o seu médico, que em seguida lhe pergunta: "Transferência?" E aparecem, sem qualquer motivo plausível, carneiros e um urso que se passeiam pelo casarão. Há um ambiente malsão, qualquer coisa está para acontecer, e os criados da casa talvez saibam o que é, porque vão fugindo todos, deixando apenas um mordomo emproado a tratar do vasto grupo de comensais.

E o que acontece é apenas isto: as pessoas não se vão embora. Já são altas horas, quatro, cinco da madrugada, e os convidados não saem. Toda a gente conhece essa sensação de ter gente em casa que nunca mais sai, mas aqui ninguém sai mesmo, ninguém se decide a isso, se estão cansados tiram casacos, desapertam os laços, estendem-se nos sofás, e em pouco tempo o salão torna-se num "acampamento de ciganos", como alguém diz, toda a gente amontoada, sem que ninguém pareça ter vontade de regressar a casa.

E assim ficam uma noite e um dia inteiros, até ser outra vez noite. Parecem intrigados, divertidos, ressacados, mas ninguém se vai embora. E ninguém percebe porquê. Há como que uma barreira invisível que os impede de sair, mas não chega a ser uma barreira física, é como se no limiar da sala desistissem, mudassem de ideias, encontrassem razões para ficar mais um bocadinho. A bizarria das conversas aumenta, discute-se a fauna da Roménia e descarrilamentos ferroviários em Nice. Há senhoras com patas de galinha nas carteiras. Um homem pergunta a outro sem motivo aparente: "Tem a certeza de que é o pai?" Há discussões, escapadelas eróticas, e um convidado que desfalece, mortalmente doente. "O que é que se passa aqui?", pergunta alguém. E ninguém sabe a resposta.

Na sua autobiografia, Buñuel recusou qualquer simbolismo e disse que O Anjo Exterminador é apenas uma variação sobre o seu tema de eleição: a "impossibilidade de satisfazer um desejo". O desejo é sair daquela casa: mas ninguém consegue sair, e lá de fora também ninguém consegue entrar, pelo que o palacete se torna uma terra de ninguém, com 20 pessoas em estado de acelerada decomposição social. Porque rapidamente aqueles cavalheiros e senhoras das classes possidentes cedem à agressividade, ao medo e aos instintos. Há acusações e agressões, abusos e histerismos, instala-se o desleixo e depois a sujidade, começa a cheirar mal, e a casa vai sendo escaqueirada segundo as necessidades logísticas. Os homens e as mulheres têm fome e sede, bebem dos canos, comem bolas de papel, procuram culpados, recorrem a estupefacientes que tinham devidamente armazenados, fazem mezinhas, promessas piedosas, têm pesadelos e visões dignos de Dali. A câmara move-se naquele huis clos, e vai acumulando detalhes daquela regressão civilizacional, daquele lamentável regresso ao estado da natureza. O anfitrião, destroçado, faz uma profissão de fé burguesa: toda a vida quis fugir da grosseria, da imundície, da violência, e agora é incapaz de fugir a isso, são todos incapazes, vivem agora como animais, presos naquela "horrível eternidade" que dura há vários dias. Buñuel confessou que gostava de ter ido mais longe, de ter ido até ao canibalismo, mas ficou-se por ali, o que já foi muito. A "sociedade" sofisticada degradada em instintos animalescos. Quem é que numa ocasião "social" nunca sentiu o grotesco daquilo tudo e não imaginou um desfecho brutal?

Os convivas percebem finalmente que se deviam ter retirado a horas decentes, que foi o seu excesso de sociabilidade e ociosidade que os condenou. E confiam que a "divina providência" os venha libertar da Calle de la Providencia. E de facto algo os liberta, ficam subitamente livres do mesmo modo inexplicável como tinham ficado cativos. Mas depois da implosão da burguesia, Buñuel ajusta contas com a religião. Os convivas reúnem-se de novo numa missa de acção de graças. E, acabada a missa, ninguém consegue sair da igreja.

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