Não ganhamos nada com um clima de guerra civil

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Há qualquer coisa de doentio e de fanático em muitos dos mais recentes debates políticos

O homem não é apenas um animal racional. Há sempre emoções por detrás das razões. Foi David Hume, um dos filósofos do iluminismo escocês, que notou que a razão está destinada a ser "escrava das paixões", um argumento que provocou a ira de gerações de racionalistas mas a que a biologia e a psicologia evolutiva vieram dar toda a razão. Hoje sabemos, por exemplo, que o nosso cérebro forma primeiro uma opinião e só depois procura argumentos para a sustentar (é possível percebê-lo seguindo o padrão de activação das várias regiões que compõem o nosso cérebro). Num livro recente, The Righteous Mind, o psicólogo social Jonathan Haidt defende mesmo que a evolução da nossa espécie não nos preparou para ouvirmos argumentos contrários, antes para justificarmos, custe o que custar, as nossas intuições.

Haidt é americano e o seu ponto de partida foi o estado de boa parte do debate público nos Estados Unidos onde, há uns anos a esta parte, parece que ninguém ouve ninguém, estando cada um dos campos fechado sobre si e tendo inclusive dificuldade em compreender por que é que o outro campo é incapaz de escutar os argumentos da razão. É cada vez mais frequente encontrarmos situações em que não é sequer imaginável que um democrata se dê com um republicano, ou um republicano com um democrata. A franqueza e a abertura que sempre marcaram o debate público no país tão elogiado por Tocqueville têm vindo a ser substituídas por uma guerra de trincheiras onde termos como conservative (direita) ou liberal (esquerda) se tornaram insultos para quem está do lado contrário da barricada.

Em Portugal, onde a recordação dos excessos do período revolucionário se juntou a uma tradição de consenso que chega a ser claustrofóbica para moderar o tom da discussão política nas últimas décadas, tem-se assistido nos últimos tempos a uma escalada no tom dos debates que, nalguns casos, lembram a vozearia pré-guerra civil. Uma das características desta evolução é o recurso crescente à sistemática desqualificação dos adversários. Não se tratam os argumentos, não se escutam sequer os raciocínios, ataca-se furiosamente o adversário, procura-se desqualificá-lo moral e pessoalmente antes de analisar as suas ideias.

Vários factores têm contribuído para esta evolução. O primeiro de todos é o fim do período de raro consenso político no mundo ocidental que se seguiu à queda do Muro de Berlim. De 1989 a 2008 viveu-se uma espécie de "fim da história", no sentido em que só franjas muitos marginais das sociedades questionavam o modelo económico do capitalismo liberal. A história não tinha acabado, mas o seu pulsar estava abafado pelo dinamismo de economias que pareciam crescer eternamente. A crise de 2008 não mostrou apenas os limites do crescimento, também despertou os fantasmas dos ressentimentos que sempre existiram contra as sociedades demo-liberais. 2008 foi como que uma espécie de espelho revertido de 1989: mesmo os mais distantes filhos do marxismo começaram a falar de novo em "superar o capitalismo" e até os que nunca leram Lenine voltaram a sair à rua a dizer que não há verdadeira democracia, ressuscitando os argumentos de antanho contra a "democracia burguesa". Se durante duas décadas discutimos mais ou menos em família como melhorar as nossas sociedades, agora há sinais de divisão em tribos antagónicas.

A crise de 2008 criou, ao mesmo tempo, outra tensão: deixou de ser possível, nas sociedades afluentes do Ocidente, deixar que as coisas continuassem mais ou menos como estavam, resistindo apenas à passagem da tempestade. Confrontados com a mudança inevitável, agravaram-se as divergências, pois passou a ser necessário escolher entre caminhos alternativos. Até 2008 foi possível acreditar que podíamos ter um capitalismo pujante e Estados sociais cada vez maiores e mais caros: acreditou-se que o crescimento pagava tudo. Depois de 2008 estamos confrontados com a necessidade de fazer escolhas.

Em Portugal acrescentou-se a estes factores um longo período de crispação política deliberada, criada pela forma como José Sócrates governava, debatia e tratava todas as oposições, e, depois disso, a formação de duas maiorias de direita, uma na Presidência, outra no Governo, uma coincidência nunca antes ocorrida que desafia o statu quo cultural dominante - e o mito urbano da "maioria sociológica de esquerda". Se foi possível fazer diminuir, no terreno estritamente partidário, o grau de crispação antes existente, a verdade é que a saída do PS do poder parece ter aberto as comportas para um tipo de retórica que se julgava desaparecida. Basta percorrer as colunas de opinião ou frequentar a blogosfera para verificar como as acusações de venalidade, por exemplo, se tornaram comuns e irrestritas.

A forma quase tribal - ou mesmo abertamente tribal - que assumem muitas discussões no espaço público é bem ilustrada por duas controvérsias de Agosto.

A primeira foi motivada pelos ataques de Manuel Loff a Rui Ramos. Não estamos perante uma controvérsia entre historiadores, louváveis e importantes. O que caracteriza o texto de Loff não é qualquer tentativa de discutir as interpretações de Ramos, é antes um exercício, feito de frases cirurgicamente descontextualizadas, para concluir que, para o autor da História de Portugal, "o salazarismo voltaria a ser um regime para o nosso tempo" (se acusar alguém de ser salazarista não é insultuoso, então não sei o que é insultuoso). É assim que ele conclui o segundo dos seus textos, o mais significativo. Tratou-se de um exercício político típico de quem divide o mundo entre comunistas e fascistas, um exercício de mistificação que, reconheça-se, teve um sucesso parcial. Houve até quem, sendo professor universitário, tivesse vindo aplaudi-lo apesar de confessar não ter lido a História de Rui Ramos. O importante não era isso: Loff seria "um dos nossos", Ramos estaria com o "inimigo". Sendo assim, para quê conhecer o que Ramos realmente escreveu? O que conta é atacá-lo...

Outro exemplo de uma rápida distorção dos argumentos e da invocação de argumentos extremados é a que decorre em torno dos planos do Ministério da Educação para o ensino profissional no básico. Quando devíamos procurar perceber as razões dos níveis de abandono escolar demasiado elevados e de a escola conduzir a demasiadas vias profissionais sem saída, uma imensa patrulha de polícias da ortodoxia saltou a terreno a tentar barrar qualquer discussão, sob a invocação de imaginados regressos ao salazarismo. O caminho não é, pois, muito diferente: ao apodarem-se os adversários de crimes salazarentos, procura-se uma espécie de solidariedade antifascista que, mesmo sem fazer qualquer sentido hoje, condiciona a divisão entre o campo dos "amigos" e o campo dos "inimigos". E condena estes últimos à abjecção, fazendo com que nem se escute a sua argumentação.

Enganam-se os que pensam que estas duas discussões são menores. Elas coincidem e reforçam a tentativa de refazer o espaço da esquerda não de acordo com os pergaminhos democráticos e reformistas do Partido Socialista, mas antes no molde jacobino e absolutista da esquerda radical. Um PS na oposição tende a ser mais sensível aos cantos de sereia do radicalismo e do discurso utópico, pelo que este envolvimento discursivo é também perigoso para os que, na oposição com ambições de ser governo, mantêm os pés na terra.

O campo que resulta destes confrontos é um campo de ruínas. Já lá distinguimos os restos de algumas amizades antigas, estragadas por divergências menores. Um dia talvez encontremos os restos dos consensos políticos de que necessitamos, estragados não por cálculos partidários sempre reversíveis, mas por se terem erguido barreiras de intolerância alimentadas por uma acrimónia irrestrita.

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