Esquecimento

Do outro mundo

Mortada era um homem bom. Sei que a frase é má e quem a escreve não é melhor, mas Mortada, esse, era bom. Talvez fosse o último homem bom do planeta, o que, pelo menos, me iliba de estar a usar um lugar-comum. Era sudanês e vivia em Cartum, mas, como não encontrasse emprego na capital, decidiu partir para o Darfur. Disseram-lhe que talvez ali pudesse trabalhar como tradutor, com alguma das organizações humanitárias internacionais.Chegou a Nyala no mesmo dia que eu, conhecemo-nos no mercado e contratei-o como guia-intérprete. Partimos imediatamente para o mais próximo campo de refugiados.
Mortada era muito organizado e fluente em Inglês. Tinha tudo para ser um excelente guia-intérprete, excepto isto: não fazia ideia do que se passava no Darfur. Nunca tinha ouvido falar da guerra nem de refugiados, muito menos de limpeza étnica ou de genocídio. Simplesmente não sabia. A televisão e os jornais em Cartum ocultavam os acontecimentos da província do Leste.
Fui eu quem explicou ao sudanês Mortada a situação no Darfur. Ele não queria acreditar, mas logo a seguir chegámos ao primeiro campo de refugiados, em Oteich, e viu. Em Oteich, havia 18 mil deslocados. Mas em Asseref, que visitámos no dia seguinte, havia 70 mil. E em Kalma, onde fomos depois, 85 mil.
Mal entrávamos, as pessoas rodeavam-nos, anelantes e desesperadas. Queriam contar as histórias das suas aldeias atacadas pelos janjawid, as casa destruídas, as famílias assassinadas. Mas desfaleciam aos nossos pés, de fome, cansaço e doença. Havia mulheres que tinham perdido os maridos e os filhos, homens feridos de balas e morteiros, crianças desmaiadas de desidratação, ressequidas, cheias de moscas.
E todos queriam falar ao mesmo tempo, empurrando-se, esmagando-se uns contra os outros e contra mim, numa amálgama fétida e mórbida.
O trabalho de Mortada não era fácil. Tinha de conter a turba, manter a ordem, assegurar que falava um de cada vez e traduzir. E fazia tudo isso, mas ao mesmo tempo chorava. As lágrimas começaram a correr-lhe pela cara no momento em que chegámos ao primeiro campo e nunca mais pararam. Levaria o resto da vida a ajudar os deslocados do Darfur, dizia ele, indignado por nunca lhe terem contado nada.
Emocionava-se com cada história que ouvíamos, e lembro-me de que, numa delas, se abraçou a uma mulher grávida, prometendo ajudá-la. Chamava-se Rasha Adam Ateib, tinha 25 anos e contou que vira o marido morrer, juntamente com toda a população da sua aldeia. Única sobrevivente, gravemente ferida, acabava de chegar ao campo, não conhecia ninguém e ignorava como chamar a atenção dos demasiado ocupados médicos noruegueses. O bebé, Mohamed, ou Mariam, ia nascer e ela precisava de ajuda. Mortada prometeu avisar os médicos.
Várias horas e muitas histórias depois, falaríamos com a equipa médica. Fizemos perguntas, discutimos problemas, mas Mortada esqueceu-se de Rasha. O dia fora demasiado longo. Aquela história perdeu-se na sua mente de homem bom.
Quando, antes de adormecer, se apercebeu da falta, era tarde. Chorou ainda mais, apertando a cabeça entre as mãos, com um olhar de louco. Mas era impossível voltar atrás ou encontrar de novo aquela mulher. O bebé ia nascer e provavelmente morrer a seguir, juntamente com a mãe, porque Mortada se esqueceu deles. Mortada, o homem bom.

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