Elogio da política baseada em princípios e em convicções

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A Dama de Ferro é um filme inspirador, sobretudo se pensarmos que esta crise lembra muito a do final dos anos 70

"Raciocínios e ideias - isso interessa-me".

A frase, uma entre tantas outras, fica-nos no ouvido. Margaret Thatcher (protagonizada por uma superlativa Meryl Streep) surge-nos naquela cena como uma doente relutante a conversar com o seu médico. A velha senhora permanece contudo igual a si própria: "Um dos grandes problemas dos tempos que vivemos é que agora somos governados por gente que se preocupa mais com as sensações e os sentimentos do que com raciocínios e ideias". O médico parece um pouco enfadado, em outro sinal dos tempos.

O filme de Phyllida Lloyd não é sobre as ideias da única mulher a chegar a Downing Street. Nem sequer é sobre a sua vida, apesar do título: A Dama de Ferro. Ou pelo menos não era para ser. O retrato de uma mulher idosa em luta com a demência e com alucinações deveria ser mais o retrato de alguém que perdeu o poder e confronta as limitações próprias de um fim de vida solitário. Uma espécie de Rei Lear moderno, chegaram a pretender os seus autores. Só que é muito mais do que isso: é também um filme sobre o poder das convicções e a força do carácter em política. É isso que o torna especialmente interessante.

"Ou nos guiamos pelos nossos princípios, ou não nos guiamos por nada", diz Thatcher/Streep noutra passagem. E di-lo com uma convicção que não permite desafios. A "filha do merceeiro" não era, com efeito, apenas mais um político, mesmo que um político-mulher. Ela distinguia-se - e ainda hoje se distingue - da multidão de "estadistas" que encheram e enchem as páginas dos jornais por recusar visceralmente o pragmatismo sem princípios. Ela tinha ideias e lutava por elas. Acredita na força das ideias.

No filme, não se conta um pequeno episódio revelador. Em 1979, quando ganhou as eleições, recebeu um cartão de parabéns de Friedrich Hayek, o economista liberal cuja obra The Constitution of Liberty era quase o seu livro de cabeceira. Na resposta, agradeceu-lhe o que aprendera com os seus escritos e acrescentava esperar "que algumas dessas ideias sejam postas em prática pelo meu Governo nos próximos meses". "Se o fizermos, a sua contribuição para a nossa vitória final terá sido imensa", concluía.

Foi isso mesmo que ela fez, com um efeito tremendo. O país que herdou em 1979 estava mergulhado no caos, conhecia uma inflação galopante, níveis de desemprego elevados e uma militância sindical que impedia toda e qualquer reforma. Era a Grã-Bretanha saída do consenso do pós-guerra, uma velha nação que parecia incapaz de contrariar a sua decadência. Um atrás de outro, líderes trabalhistas e conservadores limitavam-se a gerir o dia seguinte através de uma estatização cada vez maior da economia.

A Dama de Ferro não nos conta como é que o thatcherismo mudou o Reino Unido, muito menos como ajudou a mudar o mundo - mas mostra-nos como é que alguém de convicções fortes e vontade inabalável enfrentou a contestação da rua, o desafio da ditadura argentina, as dúvidas do aliado americano ou as reticências dos seus companheiros do partido conservador sempre em nome de princípios e ideias. Muitas vezes lhe disseram que as suas políticas conduziriam ao desastre, muitas vezes lhe falaram de vitórias impossíveis, muitas vezes teve de enfrentar os que queriam ceder face à impopularidade de certas medidas - mas Thatcher nunca desistiu e lutou sempre pelo que considerava essencial. E isso é muito inspirador.

Os tempos que correm em muitos países europeus colocam desafios que não são muito distintos dos que o primeiro Governo da "Dama de Ferro" teve de enfrentar: decadência económica, problemas financeiros, perda de influência internacional, bloqueios internos que tornam impossíveis as reformas. Hoje, os Estados já não controlam a actividade económica através de centenas de empresas públicas, mas não deixaram por isso de pesar sobre a economia devido ?? dimensão das suas dívidas.

Para alguns, vivemos o fim da era que Thatcher (e o seu amigo americano, Ronald Reagan) abriu há três décadas. Chamam-lhe "neoliberalismo" e dizem que está esgotado. Não é essa a minha opinião, mas também não é esse o tema que hoje me ocupa. Porque, independentemente do que se pense sobre o legado do thatcherismo, o que me interessou no filme foi este revelar - apesar de não ser esse o seu objectivo - como as ideias são importantes em política e como o carácter dos estadistas não é um detalhe descartável. Nos últimos anos, temos passado o tempo a ouvir dizer o contrário.

Pensemos, por exemplo, nas constantes críticas a um alegado "fanatismo ideológico" da actual maioria. É certo que muitas dessas críticas vêm de sectores que têm um dogmatismo ideológico bem maior, mas elas só são possíveis porque muitos olham para os consensos políticos das últimas décadas como dogmas imutáveis - como se consideravam imutáveis os consensos britânicos de há 30 anos. Ora, se algo distinguiu Margaret Thatcher foi não ter receio de promover a mudança e de fazer escolhas não consensuais. De romper com os consensos, sem se preocupar com a popularidade.

Richard Vinen, professor de História Europeia no King"s College de Londres, notou recentemente no New York Times que os sucessores de Thatcher "deixaram de pensar a política como um domínio de escolhas difíceis e de recursos escassos", algo insuficiente para tempos "talvez ainda piores que os da crise existente em 1979", quando "Maggie" chegou ao poder.

Por outras palavras: quer os que acreditam que a era que Thatcher inaugurou há 30 anos chegou ao fim, quer os que sentem a falta de uma nova revolução inspirada no seu liberalismo, deviam aprender com o seu exemplo. Primeiro, actuando de acordo com as suas convicções, sem ilusionismos; depois, sendo claros no discurso político, isto é, defendendo as suas posições com a frontalidade e a claridade que a caracterizava.

É talvez pedir de mais. Tal como será ver de mais num filme que, muitas vezes, se arrasta em cenas desnecessárias sobre a velha senhora em luta contra a inevitável decadência física. Mas, nestes dias, em que tanta gente anda por aí a dizer que "não é possível", apetece recordar o seu exemplo. É que, como recordou o seu biógrafo Charles Moore, num artigo na Vanity Fair, "em todas as batalhas a que Thatcher meteu ombros, os seus críticos disseram que "não era possível", mas, para o bem ou para o mal, ela tornou sempre possíveis os seus objectivos".

Pois foi. E foi porque, como ela disse, "um líder é alguém que sabe o que quer alcançar e consegue comunicá-lo". Não podia ser melhor dito. Jornalista (jmf1957@gmail.com)

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