É tudo uma questão de opções políticas

Cavaco assume a defesa da desconstrução do Estado Social e do redesenho da organização social

Cavaco Silva defendeu explicitamente a adopção de um novo modelo social, que modifique a organização da sociedade em relação à resposta a dar ao envelhecimento da população, bem como à baixa de natalidade. Vale a pena lembrar as suas declarações, transcritas no PÚBLICO de 3 de Junho: "No futuro, será difícil exigirmos do Estado uma maior fatia de recursos dirigidos à protecção e segurança social. Perante esta limitação, que tenderá a persistir mesmo em presença de medidas destinadas a assegurar uma acrescida sustentabilidade a prazo do sistema, teremos de questionar como poderão os cidadãos, instituições e comunidades contribuir para uma maior inclusão social." E o Presidente da República defendeu ainda que, nesse novo modelo, tem de se "repensar o futuro das políticas sociais e o papel das diferentes instituições no combate à exclusão", deixando "requisitos fundamentais" para esse fim: o aumento da cooperação das instituições com criação de redes sociais, participação dos cidadãos e descentralização das competências e atribuições das políticas públicas de inclusão.As declarações, compostas de dois momentos diversos, são, no primeiro desses momentos, uma declaração de guerra assumida ao Modelo Social Europeu. Sem qualquer hesitação, Cavaco assume a defesa das teses neoliberais que lutam, há três décadas, por obter do poder político a desconstrução do Estado Social e o redesenho da organização social, tendo como objectivo último servir o interesse das empresas que constituem o mercado.
O Presidente é cristalino a pugnar pela tese de que o Estado se envolva cada vez menos no assegurar do bem-estar dos cidadãos e no garantir que eles tenham uma velhice digna e com direito à redistribuição justa da riqueza. Para mais, quando contribuíram para a construção do bem-estar social durante a sua vida activa. Depois de retirar ao Estado esse papel, Cavaco admite como alternativa: "Teremos de questionar como poderão os cidadãos, instituições e comunidades contribuir para uma maior inclusão social." Ou seja, o Presidente passa da justiça e igualdade garantidas pelo Estado a todos os cidadãos para uma hipótese de modelo em que o Estado não surge como árbitro, mas em que é deixado a uma espécie de livre arbítrio, a uma espécie de consciência dos cidadãos, das instituições e das comunidades assegurar formas de protecção social.
Esta tese, que ganha terreno em todo o mundo e é já poder na União Europeia, tem um objectivo, não confessado por Cavaco. Um objectivo simples: diminuir a carga fiscal sobre cidadãos (os neoliberais mais fundamentalistas defendem mesmo que haja um imposto único, seja qual for o rendimento dos cidadãos tributados) e, é claro, diminuir a carga fiscal sobre as empresas. Empresas essas que beneficiarão ainda pelo facto de, no novo modelo, o Estado deixar de assegurar - ou reduzir radicalmente - os serviços que constituem o Estado Social (Segurança Social, Educação, Saúde). Que assim deixam de ser direitos dos cidadãos, garantidos publicamente, e passam a ser um bem de consumo, adquiridos privadamente. Isto, criando um clima que transforma os cidadãos activos e trabalhadores da função pública, por exemplo, numa espécie de criminosos, que vivem à conta do erário público, numa inversão imoral de valores sociais.
Ora, é claro que o segundo momento da declaração do Presidente é deste ponto de vista irrelevante. Até porque as três vertentes apontadas por Cavaco Silva são perfeitamente compatíveis com o Modelo Social Europeu e existem já em alguns dos Estados que o adoptaram. A questão é outra, não é de organização da interacção da sociedade com o Estado, é antes de papel que é destinado ao Estado. E o que está em causa nestas teses, que agora campeiam, é o facto de elas rasgarem o contrato social estabelecido no pós-guerra, que obriga as empresas a terem responsabilidade social e a darem parte dos seus lucros, sob a forma de impostos, para o bem-estar social. Daí que a questão seja, mais uma vez e sempre, a mesma: por que razão não são as empresas mais taxadas nos seus lucros? Nomeadamente, porque não são taxados os lucros do mercado financeiro, dos bancos, por exemplo?

As declarações do Presidente tinham uma outra vertente, que se afigura contraditória com a primeira. Cavaco defende políticas de incremento da natalidade. Ora, a perplexidade é a de perceber como é que se vai fazer os cidadãos ter mais filhos, ao mesmo tempo que se lhes retiram direitos sociais, acesso ao bem-estar e dignidade, se diminui a prestação de serviços públicos, se baixam salários, se lhes exige mobilidade e flexibilidade a todo o custo? Ou será que a ideia é criar subsídios à procriação? E qual é o lugar e o papel social da mulher nesse modelo? O de procriadora? Dificilmente se acredita que Cavaco Silva não tenha noção das possíveis implicações das suas declarações ao nível da igualdade de género. No ano em que a União Europeia celebra a Igualdade de Oportunidades para todos, só por ironia se pode admitir que o Presidente da República não foi informado sobre o que isto significa, em todos os seus contornos.

Sócrates lançou o programa que vai levar computadores portáteis e serviço de internet a professores e alunos do secundário a preços abaixo do mercado. Quebrando o unanimismo com que a medida foi aceite, algumas perguntas: por que razão se "oferecer" computadores baratos aos professores depois de lhes estar a reduzir o nível de vida ao congelar as carreiras? O que quer o primeiro-ministro dizer com a afirmação de que os computadores se poderão equiparar ao papel dos livros e dos professores na transmissão de conhecimentos? Será que alguém foi ver os estudos de avaliação desta medida no país pioneiro da sua adopção, os Estados Unidos? Alguém reparou nas conclusões de que os portáteis nas escolas reduziram os níveis de aprendizagem (ver, por exemplo, o New York Times de 4/5/2007)? Mais uma vez a pergunta coloca-se: será que isto não vai ser apenas mais um grande negócio para as empresas que comercializam os computadores e o acesso à Net? A custas do erário público, claro, que, para alguns, só parece ser mal usado quando é para garantir o bem-estar dos cidadãos quando estes chegam ao fim da vida. É tudo uma questão de opções políticas. Jornalista

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