O especialista ISSilva

Foto

Se temos dívida, dizem as tábuas do deus das finanças generalizando o pecado de alguns, novos-ricos e velhos, a todos que lhes convém e libertando da exclusividade pecadora relevante os especuladores financeiros, agora temos de dizer que todos fomos burlados pelos que têm em Artur Baptista da Silva a imagem do perito num discurso credível que poderíamos apelidar - sociologuês, economês, mais uns pós de democratês - de especificamente adequada ao universo mediático, o mediatês. Nessa linguagem qualquer acha para a fogueira da dívida arde como parte do muro espesso e constante de fumo ideológico, transparência opacizante que cega a possibilidade da compreensão dos processos e estabelece a verdade única que temos todos de aceitar como credo, que, na sua última versão, é a de sermos todos - o tal todos igual a cada um de nós - soldados para combater na guerra da crise um inimigo que quanto mais rosto tem menos rosto mostra, ocultado que é pelos escândalos lançados diariamente, novas camadas de espessura da atualidade instante do sítio mediático, "arqueológico" na acumulação incessante de narrativas sobrepostas.

O tipo, o burlão, passa na televisão de referência e passa nos jornais de referência, como voz credível - passaporte milagroso - como competência discursiva idêntica às dos que fazem exatamente o mesmo tipo de discurso, que é aquele que justamente contribui para aquilo que forma uma religião da crise, a que correspondem, como se sabe, duas orações diárias (que só nos libertam do pecado no dia do juízo final) reconhecíveis e salvíficas para lá de qualquer horizonte vinculativo: a da relação entre a austeridade inevitável e a eficácia prometida para as calendas - trinta anos dizem agora - e a da austeridade menos austera, dada em doses mais leves, mais vezes e mais espalhada no tempo, com o tal crescimento a converter o coma prolongado numa convalescença eternizando-se, necessitadas, uma e outra, da convergência dos astros para deixarmos de dever e porventura passarmos a ser credores (deve ser esse o grande desígnio, "emprestar a juros" e não "pagar juros" ) - tudo muito científico, claro.

O facto de este discurso passar no ecrã como manteiga se põe numa torrada significa duas coisas: uma, que é um discurso fácil porque qualquer burlão o repete de modo credível e ninguém dá por isso, a não ser fora de prazo e também que aqueles que o fazem facilmente imitável repetem superficialidades - nenhum discurso competente, verdadeiro por não omitir a complexidade das coisas, causas e consequências, e eficiente, compreensível junto dos destinatários, é imitável. O que quer que sirva para prolongar a crise nos seus eixos estruturantes é credível, eles repetem-se até à exaustão dizendo que pecámos e que se cortem as gorduras do Estado provocando mais mortes nas urgências e empregando os dinheiros públicos para salvar os bancos e os agentes da toxicidade financeira da morte justa.

O caso aqui é extraordinário e é o exemplo claro da insanidade portuguesa no centro da mecânica nervosa do sistema. Quando nos mecanismos supostamente democráticos do esquema - que logo se recomporá - uma qualquer mensagem flua sem reticências de nenhum tipo porque alguém que tem imagem e estatuto visível se vende a si mesmo como aquilo que não é e ninguém dá por isso, o problema não está aí, nesse ninguém que não desmascara e que seria expressão de uma virtude do sistema, força do seu sistema imunitário capaz de expulsar o calibre de uma mentira destas à primeira - o problema está em que todos aqueles que fazem o discurso da crise mentem com quantos dentes têm na boca, pois sabem que uma crise assim não tem saída quando se aplicam as mesmas receitas que a ela levaram - a repetição incapaz de potenciar ação induz a competência da imitação. A prova da incompetência do discurso dominante está nesta imitação fácil. Não há nada mais simples do que imitar com uns modos bem parecidos um discurso vazio, que nada diz e por isso nada serve - resolve - em matéria de futuro. A classe política no poder é composta por um bando, uma "etnia" financeira e seus rituais mediáticos, que papagueia funcionalmente o mesmo vazio que qualquer um imita. Na realidade modelo e imitador a mesma repetição acéfala. Dêem-lhes massa crítica em concentrada ração, talvez melhorem.

Sugerir correcção