O dever de reserva dos juízes

A "explicação" das decisões serve de desculpa para quem não se importa com a descredibilização da Justiça

Após a divulgação da deliberação do plenário do CSM acerca do dever de reserva, vários editoriais, artigos e opiniões foram publicados na imprensa, afinando todos pelo mesmo diapasão: foi uma decisão errada, é a lei da rolha, está-se a querer silenciar os juízes. Não me cabe defender ou justificar a deliberação do CSM, nem tenho mandato para o efeito. Apenas e tão-só quis fazer este exercício, para ver quantos leitores decidiam entender verdadeiramente o que está em jogo. É preciso esclarecer, à partida, duas coisas simples, que têm sido omitidas.Em primeiro lugar, o dever de reserva não foi estabelecido agora. Está consagrado no art.º 12.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) desde 1985 e já estava consagrado no EMJ de 1977, embora com uma terminologia pouco feliz, como "dever de sigilo". Em segundo lugar, não é uma inovação portuguesa. Com designação equivalente e consagração ou não em lei, existe restrição semelhante na generalidade dos países europeus. Não se pode confundir dever de reserva com "silêncio" dos juízes. Desde logo porque o direito à informação é acautelado na própria deliberação, o que não tem sido salientado. É expressa a deliberação ao consagrar que, salvaguardados os segredos de justiça, profissional e de Estado, além da reserva da vida privada, "os juízes podem dar todas as informações sobre as decisões e seus fundamentos". Aliás, já há algum tempo a esta parte a ASJP vem divulgando no seu site (www.asjp.pt) as decisões dos tribunais que têm suscitado interesse público. Passou a fazê-lo por considerar que as decisões dos tribunais devem estar sujeitas ao escrutínio público e para o efeito devem ser conhecidas deste, em termos integrais. É uma boa via de fazer a ligação directa dos cidadãos à Justiça, permitindo a estes aquele escrutínio e legitimando-se assim os tribunais.
Creio pois que, ao contrário da crítica geral, esta deliberação pode ter a vantagem de permitir um melhor exercício do direito à informação. O CSM adquire especiais responsabilidades e não pode mais continuar a eximir-se às suas obrigações de ter uma estrutura adequada, que faça a ligação dos tribunais com a comunicação social. Desde logo porque os juízes, em regra, não têm nem disponibilidade nem vocação para essa articulação. Depois porque é a melhor forma de não permitir desculpas para alguns falarem. Argumenta-se, porém, que informar não chega. É preciso "explicar" a decisão, diz-se. É sempre assim, quando se quer esconder o gato, o rabo aparece de fora. Então sejamos honestos, o problema não é informar ou ser informado, a questão é "comentar" ou "opinar".
Mas isso de "explicar" a decisão de forma pedagógica e até ser positivo o confronto de perspectivas, já que não há absolutas certezas técnico-jurídicas, só pode servir de desculpa para quem não se importa com a descredibilização da Justiça, ou para quem quer continuar a "opinar". Acredito que seja muito agradável para um órgão noticioso, nomeadamente na perspectiva das "vendas", ter um juiz a "comentar" a decisão de outro juiz. Com efeito, considerando o que é notícia - a definição não é minha, mas "notícia é o homem morder o cão e não o cão morder o homem" - fácil será de ver que o juiz convidado a "comentar" será aquele que tiver opinião que permita alimentar a notícia, tal como foi definido ser notícia pelo órgão noticioso. Começa aqui o incontornável. É a comunicação social a escolher os "juízes comentadores". Com que objectivo? Já o disse, alimentar a notícia. A velha máxima jornalística "não deixes que a verdade estrague uma boa história" explica tudo.
Teríamos assim juízes desembargadores a "comentar" sentenças de juízes de 1.ª instância e juízes-conselheiros a "opinar" sobre acórdãos daqueles? E porque não juízes de 1.ª instância a fazer o mesmo sobre decisões dos tribunais superiores? E quando fossem proferidas as decisões de recurso fazia-se a comparação com os "comentários"? A quem importariam tais decisões de recurso, se os casos já tinham sido julgados, por juízes, na praça pública? Compreende-se a crítica à deliberação do CSM para quem considere os valores da imparcialidade e da independência dos juízes, bem como o da confiança dos cidadãos na Justiça e do prestígio e dignidade dos tribunais, como valores menores em face do "direito de comentar ou opinar de cada juiz". Seguramente não é essa a perspectiva da esmagadora maioria dos juízes portugueses. Creio que também não é a do cidadão comum. Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

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