A vida num só dia

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É comum imaginarmos o que faríamos se tivéssemos apenas mais um dia de vida. Mas e se vivêssemos várias vezes o mesmo dia, uma e outra vez, repetindo até à náusea esse "último dia"? Esta hipótese filosófica, realisticamente impossível, é o achado do filme de 1993 Groundhog Day, que se chamou em português O Feitiço do Tempo. Não deve haver estudo mais completo sobre o tempo desde Bergson. E Harold Ramis, o cineasta, não é nenhum Bergson. É isso, aliás, que é espantoso, que uma figura de segunda, que nunca fez senão filmes simpáticos, tenha concebido (é também um dos autores do argumento) uma obra fundamental, talvez a mais importante comédia de ideias dos últimos 20 anos.

Groundhog Day começa de forma simples. Phil, meteorologista de uma estação televisiva em Pittsburgh, é enviado a uma cidadezinha da Pensilvânia para uma reportagem sobre o Dia da Marmota. Trata-se de um velho costume de Punsxatawney (grande nome). Todos os anos, a 2 de Fevereiro, libertam uma marmota, que esteve a hibernar, e, se o bicho vir a sua própria sombra, isso significa que haverá mais seis semanas de Inverno. Phil acha tudo aquilo saloio, e ainda por cima não gosta que uma marmota assuma as suas funções de meteorologista: "I make the weather." É concorrência desleal e provinciana.

Phil é Bill Murray, e faz, como sempre, de Bill Murray: inteligente, misantropo, sardónico. Para Phil, aquela reportagem é um tédio, e está mortinho por regressar a casa. Só que a marmota, que viu a sua própria sombra, acertou: vêm aí mais seis semanas de Inverno, e desaba logo um nevão que deixa a equipa da TV presa em Punsxatawney. Isto é um pequeno contratempo, comparado com o que vai acontecer a Phil. Ele adormece nessa noite de 2 de Fevereiro, e acorda, como dizer, na manhã de 2 de Fevereiro (não é gralha). O despertador toca a mesma canção da "véspera", os hóspedes e a dona da pensão repetem exactamente o que tinham dito, passa de novo por um mendigo, encontra outra vez um colega de curso, etc.

E, depois, no dia seguinte ao dia "seguinte", a mesma coisa, é outra vez 2 de Fevereiro e tudo se passa da mesma maneira, à mesma hora. E Phil é a única pessoa a ter noção da repetição, porque para todos os outros tudo está a acontecer pela primeira vez. Como é normal, o meteorologista acha que está doente ou maluco. Tira radiografias, que não acusam nada. Vai a um psiquiatria que não encontra nada mais adequado para lhe dizer do que "volte amanhã". E os dias vão-se repetindo, sempre iguais. Quando ele conta o que se passa, ninguém acredita, porque ninguém mais nota que é o mesmo dia. E Phil faz a inesquecível pergunta: "E se não houver amanhã? Hoje não houve." É um homem preso para sempre no mesmo dia de Inverno, sem amanhã.

A inteligência do argumento está em explorar todas as hipóteses que Phil tem. Ele percebe que a vantagem da sua situação é que tudo aquilo que fizer não tem consequências, uma vez que o dia seguinte é, digamos, a véspera - ou seja, Phil torna-se moralmente irresponsável pelas suas atitudes, faz o que lhe apetece, comporta-se como um miúdo. Agride, rouba, engata, conduz como um louco, provoca desacatos, come bolos atrás de bolos, e, acrescenta, já nem sequer usa fio dental. Mesmo quando é apanhado, isso não importa, porque ele acorda sempre, às 6 da manhã, na sua cama de hotel, e ninguém se lembra de nada.

É uma versão fantasista dessa escolha moral que às vezes imaginamos: o que faríamos, se tivéssemos apenas um dia de vida. Ou então uma versão simplesmente exagerada da realidade, pois várias pessoas a quem o protagonista conta que vive todos os dias um dia igual respondem: nós também. A rotina é afinal uma vida todos os dias igual, e percebemos que Ramis não quis só fazer uma brincadeira ou uma ficção. O feitiço do tempo, que é uma maldição, permite que Phil experimente todas as opções. Mas se o tédio mata, viver irresponsavelmente, apenas segundo o princípio do prazer, também não é o caminho para a felicidade. E Phil desespera, comete suicídio (em vão, pois acorda vivo), rouba a fatal marmota, enfim, tenta tudo para fugir de vez ao dia 2 de Fevereiro. Phil percebeu que pode fazer tudo o que quiser menos ser livre.

E então descobre que a única liberdade está no amor. Atraído pela sua produtora, Rita (Andie MacDowell, a mulher mais encantadora do mundo no princípio da década de 1990), decide seduzi-la. Aproveita o facto de saber antecipadamente tudo o que acontece, todos os gestos, todas as conversas. Para isso, dia após dia, vai conhecendo Rita, pergunta quais os sonhos e gostos dela, até possuir todos os elementos para a conquistar. Phil faz erro atrás de erro, mas, ao contrário dos outros homens, aprende, e no dia seguinte emenda.

Rita é uma boa alma, uma mulher sensível e entusiasta, bastante ingénua, vagamente melancólica, e ternurenta até mais não. E Phil passa da sedução à paixão genuína. Decide então mudar de vida, como faz quem ama. Aprende a tocar piano, decora poemas franceses, coisas de que ela gosta, mas também ajuda toda a gente que ele sabe que vai estar em apuros naquele dia. Escolheu a rectidão moral.

Só que Rita suspeita que há qualquer coisa de errado, que ele tem um estratagema qualquer, tem informações impossíveis de obter, e afasta Phil. Mas agora que aquele dia 2 de Fevereiro já se repetiu tantas vezes que se tornou um dia inesquecível, um dia, digamos, irrepetível, ele conta o que se passa e desta vez ela acredita, ou está disposta a acreditar. Está disposta a tudo.

Rita nunca saberá a verdade, pois passa a noite (casta) com Phil e de manhã ele descobre que o dia mudou. Que é outro dia. Que é amanhã.

Pedro Mexia interrompe a crónica até 21 de Agosto

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