Reinventar a comunidade e a escola

O ciclo da política de inovação em Portugal apresenta "falhas de sistema" nas fases de concepção e avaliação, papel que poderia ser assumido pelos chamados "think thanks", institutos de investigação dotados de recursos humanos altamente qualificados capazes de transformar Política em "Policy".

Na última crónica, a propósito do cinquentenário da Escola Técnica que frequentei, partilhei com os meus leitores algumas reflexões em torno do Ensino Técnico. Nesse artigo referi que deixaria para a corrente crónica a referência aos verdadeiros artífices da mudança do Ensino Técnico: os seus professores. É ao que vamos, de seguida.Hoje em dia, a imensa geração de jovens que sai das escolas secundárias não sabe sequer o nome de um professor. O mundo escolar faz-se de «sotôres», rostos e vozes sem nome para os estudantes; miúdos que, na sua grande maioria, aprendem mais fora do que dentro da Escola. Será isto dramático? Em certa medida sim. Em certa medida não.Quando «a crise de alguns valores» (tornaremos a este assunto numa próxima crónica) não era tão perceptível, o professor tinha um papel chave na difusão dos padrões sociais que haviam de guiar os jovens no seu percurso pela vida. Ora, essa situação, que mudou de forma quase imperceptível, terá tido consequências incalculáveis no modo como a juventude forma o seu próprio conjunto de referenciais para actuar na vida social e profissional.O papel do professor, enquanto agente socializador, está hoje muito desvalorizado. Os professores parece que deixaram de acreditar nessa sua função e preferem ser espectadores em vez de actores ante o futuro dos seus alunos. Os pais, que antes viam os professores como o seu alter-ego em termos educativos, parece que hoje desconfiam do exercício desse papel por aqueles. Os alunos, que antes ouviam os professores e até eram capazes de se aconselhar com eles, parece que hoje rejeitam essa relação, que não foi substituída por nada.É claro que nem toda a realidade é como a descrevo acima. Ainda há professores que acreditam na sua missão de socializadores e agem como tal. Pais que fazem confiança nos professores e os vêem como um elo essencial do processo de desenvolvimento dos seus filhos. Estudantes que confiam nos seus professores e ouvem as suas palavras como uma mensagem para o futuro.No que me toca, eu dificilmente seria hoje como sou se não fossem os professores que tive. Principalmente os da EICA (Escola Industrial e Comercial de Abrantes), porque fui seu aluno quando tudo estava em aberto e a sua orientação e aconselhamento foi importante para desenvolver em mim uma personalidade e uma expectativa da vida. Escrever aqui o nome de alguns desses professores é o mínimo que posso fazer para expressar o enorme reconhecimento que tenho pela sua acção. Por todos, aqui vão alguns desses homens e mulheres, do meu tempo, que deram sentido ao ensino como forma de aprendizagem para a cidadania: Maria Justina Oleiro e os padres Jana e Narciso, cujas aulas de Religião e Moral eram um estímulo ao desenvolvimento de uma cidadania responsável; José Vasco, cujas aulas de Higiene abriam horizontes aos espíritos juvenis, de forma elevada; Eurico Heitor Consciência, professor «emprestado» que transformou o Direito Comercial, de terra árida e seca, numa orquestra em que todos gostavam de tocar; Esteves Pereira e Luís Alves, que foram capazes de transformar as aulas de Contabilidade em espaços de aprendizagem dinâmicos; Maria Helena e António Bandos, um casal que soube ensinar que a História não era «histórias», mas coisa vivida; Oliveira Martins, que complementava a exactidão da ciência com o seu enorme exemplo para os alunos; Mário Passarinho e Palma Borges, que transformaram as aulas de Educação Física em momentos lúdicos; Luís Ribeiro, que tornou a Economia Política em coisa de gente; Hélder Tiago e Hélder Miguel, professores muito jovens à procura de espaço; Ferraz Diogo, professor maduro, comprometido; e tantos outros, que a escassez de espaço não permite aqui citar, mas cuja acção foi igualmente empenhada.Uma última palavra para o Director, ao tempo, Américo Santo. Um homem que, percebo-o hoje, de forma clara e sem que nem ele, provavelmente, se desse conta, fazia o impossível: fechar todas as portas fazendo que com algumas delas, ao mesmo tempo, se mantivessem abertas.Um dia, uma professora, oriunda da Escola Veiga Beirão, em Lisboa, que fazia na EICA o seu ano de estágio profissionalizante, dizia, bem alto, a toda a turma em que eu me encontrava: «Eu já andei por muita escola e nunca vi nada assim!» Referia-se, com alguma insatisfação, ao carácter extrovertido dos alunos. Ao seu destemor em colocarem questões nas aulas. À sua permanente insatisfação por uma escola melhor e mais aberta. Os alunos daquela Escola Técnica queriam compreender, saber mais. Estar na escola como estavam em sua casa, nas ruas da cidade, nos cafés, nos locais onde a cidade se vivia; esta atitude era potencializada pelo facto de os professores serem também as pessoas que encontravam nas ruas da cidade, nos cafés, nos locais onde a cidade se vivia, os pais dos seus amigos, os conhecidos dos seus pais. Ensino e cidadania misturavam-se a um ponto tal que, a certa altura, era difícil distingui-los.Uma senhora que vinha de Lisboa não podia, de um dia para o outro, compreender uma coisa assim, como funcionava este fluir social: o mundo donde ela vinha não encaixava nesta moldura.Quando, no final do ano, a senhora se foi embora, foi, não sem tristeza e comoção, que se despediu dos «seus» alunos. Ainda hoje me lembro das suas palavras: «Esta foi a melhor escola onde eu já estive!»Que outra coisa poderia eu dizer, no cinquentenário dessa escola de eleição que foi a Escola Industrial e Comercial de Abrantes, senão: por favor reinventem, quanto antes, as escolas assim! Portugal agradece.*estevaomoura@yahoo.com

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