O Equívoco no Fim do Político

É ou não o fim das ideologias - entenda-se: o fim das grandes ilusões - a condição suficiente para o regresso do político? Provavelmente não. Reflexões de vários ensaístas na revista dirigida por Eduardo Lourenço.

Repetindo um célebre título de Chantal Mouffe, a revista de reflexão e crítica dirigida por Eduardo Lourenço publica neste número um conjunto de ensaios subordinados ao tema do regresso do político. Cada um ao seu modo, Mónica Dias, Joaquim Jorge Veiguinha e António Reis vêm reflectir sobre o valor do político, as condições do seu retorno e as razões da sua suposta ausência a partir de dado momento histórico.Para lá das referências feitas, importa abordar em particular o ensaio do historiador António Reis pelo seu inegável interesse, mas também, o que não deixa de ser interessante, pela equivocidade que lhe subjaz. Curiosamente, o equívoco surge com o pretexto de uma formulação inequívoca expressa na seguinte passagem: "a questão do fim das ideologias, a que prefiro chamar, para evitar equívocos, o fim das grandes ilusões anuladoras do conflito". Só que esta conversão das ideologias em ilusões e, especificamente, em "grandes ilusões anuladores do conflito" provoca fortes perplexidades. De facto, há que perguntar o óbvio: não será precisamente na verificação, provavelmente ilusória, de que os grandes conflitos ideológicos se anularam que assenta a tese do fim das ideologias? Se sim, ou o fim das ideologias é um ponto de vista eminentemente ideológico e, portanto, logicamente auto-contraditório, ou as ideologias, de forma exactamente inversa à que pretende António Reis, representam o papel de grandes agentes conflituais correspondendo o fim das ideologias a um posicionamento anti-ideológico? De todo o modo, afirmar que as ideologias são ilusões, independentemente daquilo que vêm iludir, é o mesmo que afirmar que a verdade iludida só pode transparecer de modo não ideológico e contra as ideologias. Repentinamente, o que poderia haver de problemático na "célebre questão do fim das ideologias" dissipa-se na mera formulação operativa do conceito de "ideologia" - bastou definir (in)equivocamente ideologia para que se tivesse dada por demonstrada a evidência do "fim das ideologias". Onde está, então, a questão?Mas as perplexidades não terminam aqui. Ao catalogar as quatro grandes ilusões em processo de esgotamento "neste final de século", António Reis não só realça o aspecto ideológico de uma delas somente - a ilusão revolucionária-colectivista-ideológica - como vem dizer que "o mundo de hoje tem vindo a assistir à mistura explosiva de ingredientes das outras três ilusões, que a globalização económica ajuda a potenciar". Repentinamente, o fim das ideologias parece referir-se apenas à ilusão do socialismo real tanto mais quando as restantes três ilusões - a liberal-tecnocrática, a mediática e a populista - estão de boa saúde e constituem o verdadeiro obstáculo ao regresso do político. Paradoxalmente, a ideologia que menos deveria preocupar António Reis - é, para todos os efeitos, um facto a "derrota histórica da ilusão revolucionária-colectivista" - converte-se na grande responsável pelo que haveria de negativo no ideológico conquanto não seja a ela que assaque a responsabilidade por actualmente ser ainda necessário lutar pelo regresso do político. É ou não o fim das ideologias - entenda-se: o fim das grandes ilusões - a condição suficiente para o regresso do político? Provavelmente não. Em filigrana lê-se algo inteiramente diverso. Escusado seria, pois, esta etiologia do inexistente como se dos mortos se pudesse esperar o que quer que fosse. Ao fim e ao cabo, para António Reis são mesmo as três ilusões que subsistem (eventualmente a par da quarta, mas nunca subsumidas a esta) que suscitam "efeitos perversos" como "a exclusão social, com o aumento da pobreza e da desigualdade, a criminalidade e a violência".Posto isto, torna-se bastante mais claro o problema, absolutamente crucial, que o autor nos coloca - "até que ponto caminhamos para o reconhecimento do primado da política e do político enquanto instância de confronto democrático entre diferentes opções possíveis de regulação dos conflitos sociais não redutíveis a outras instâncias de carácter económico, ideológico, mediático e populista". Ao mérito da questão formulada importa acrescentar o mérito da proposta que o autor lança, proposta filiada na tradição republicana, aliás bem patente na filosofia de Hannah Arendt, também ela explicitamente preocupada com a necessidade de recuperar a dignidade da acção política. Nas palavras do autor, "propomo-nos atribuir ao político quatro funções próprias: a pluralização e alargamento das opções credíveis e possíveis para a resolução dos problemas da sociedade; a regulação dos antagonismos e conflitos por métodos de legitimação democrática; a elaboração de reformas com vista à prevenção ou à superação de situações de crise potencialmente desintegradores de organização social; a identificação do indivíduo/cidadão num espaço que perdeu os seus pontos de referência."

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