New Order, a divisão do prazer

Entreos restos melancólicos dos Joy Division, o pós-punk, e a música de dança esteve uma banda: os New Order. Essa ruptura marcou a pop no final do século XX. Hoje, 20 anos depois, "Get Ready" mostra que continuam capazes de fazer canções que comovem e provocam uma estúpida alegria.

Começa a tornar-se um lugar comum a existência de longos períodos de tempo entre cada álbum. Foi assim com os Stone Roses e com os Stereo MC's e volta a acontecer com os New Order, que nunca foram conhecidos pela regularidade com que editavam álbuns. A banda de Bernard Sumner, Peter Hook, Stephen Morris e Gillian Gilbert não publicava um álbum de originais desde 1993 e regressa agora, depois de zangas e falências várias, com novo álbum, "Get Ready".Quando os próprios já suspeitavam que não mais se iriam voltar a juntar, eis que surgem dez novas canções, fruto de um parto doloroso que durou ano e meio. Para uma das bandas mais marcantes dos últimos 20 anos, "Get Ready" não é mais do que o início de uma nova vida. Como toda a gente sabe, os New Order nasceram das cinzas dos Joy Division, meses depois do suicídio de Ian Curtis. A partir daí, tornaram-se, surpreendentemente, numa das mais inovadoras bandas da pop britânica. O tema "Blue Monday", editado em 1983, marcou a passagem do pós-punk para o que veio a chamar-se música de dança. A ruptura marcou a pop no final do século XX.Apesar dos primeiros anos terem sido vividos sob a ameaça do fantasma de Curtis, os New Order foram pioneiros, ao transformarem-se no primeiro grupo pop a enveredar decididamente pela música de dança. A música que praticavam até à altura era depressiva, melancólica, nostálgica, mas, com uma viagem a Nova Iorque, tudo mudou. Poucos são os grupos capazes de subsistir à morte, ou a uma mera alteração, do seu vocalista. O protagonismo de Ian Curtis, que muitos recordam pelas suas actuações intensas onde, não raro, sofria de ataques epilépticos, levava a pensar que era o que iria acontecer aos New Order. Nova ordem. Os próprios sobreviventes questionaram a sua continuação, mas ao editarem um primeiro single, "Ceremony", ainda com letras de Curtis, mostraram que estavam dispostos a prosseguir. Mudaram apenas o nome e, de Joy Division, passaram a chamar-se New Order, curiosamente mais uma expressão retirada do imaginário fascista que marcou certas fases do início da sua carreira. Por essa altura, a música, apesar de mais funky e de ter passado a incluir mais sintetizadores (a cargo de Gillian Gilbert, a namorada do baterista Steve Morris), continuava a percorrer paisagens melancólicas, de onde irrompia um travo amargo e uma tristeza construídas à imagem dos Joy Division. Daí até à cultura do hedonismo foi um pequeno passo.Nos seus primeiros tempos, permaneceram fiéis à herança de Curtis. O single "Ceremony" e o álbum "Movement" continuavam a ser atormentados por um sentimentalismo depressivo e melodramático, próprio do pós-punk, para o que contribuía, aliás, a produção entregue a Martin Hannett - um excêntrico estudioso de acústica que muitos julgam ser o principal responsável pela atmosfera dramática que se respirava nos álbuns dos Joy Division, sendo "Closer" a sua maior obra. Bernard Sumner tinha, entretanto, assumido as funções de vocalista, mas era óbvio que não se sentia à vontade no papel. As imagens da digressão que os New Order levaram a cabo nos EUA depois da morte de Curtis (e agora reaproveitadas para o lançamento de um DVD, "316 - New York 81 Reading Festival 98 and in conversation", que inclui imagens desse concerto, da reunião de 1998 e uma entrevista com os próprios) deixam perceber que o incómodo de cantar perante público era evidente.Muito mudaria no álbum seguinte, "Power, Corruption and Lies" (1983). A participação de Gillian Gilbert, nos sintetizadores e parafernália eléctrónica, tornou-se mais preponderante; numa altura em que o baterista deixou de utilizar o seu equipamento acústico passando a operar com umas modernaças baterias electrónicas. As canções começavam a respirar outra alegria e temas como "Your Silent Face" e "Age of Consent" assumiam o estatuto de canções pop. Tout court. O tom introspectivo esbatia-se, sinal de que estavam para chegar os novos New Order.Tratamento de choque. "Blue Monday" ficará para a história como o máxi-single que mais cópias vendeu, apesar da banda ainda hoje considerar que foi um mau negócio devido ao preço inusitado das capas, que simulavam uma antiga floppy disk. Em 1983, e ainda para mais com o fantasma de Curtis a pairar, a música de dança era mal vista. O disco-sound tinha deixado marcas terríveis e a house de Chicago ainda estava para se impor. Mas quando os New Order chegaram a Nova Iorque para trabalhar com o produtor Arthur Baker, tudo mudou. Arthur Baker era um dos principais militantes do hip-hop, mais precisamente da facção electro. Já tinha gravado o seu próprio projecto, os Planet Patrol, para a Tommy Boy, mas distinguia-se nas funções de produtor, tenho assinado a produção de discos históricos na área do electro, como os editados pela Jonzun Crew. O tratamento que deu aos New Order foi de choque. O ritmo tribal, algo monocórdico, e tão em voga naqueles dias foi substituído pela batida de um bombo, electrónica, capaz de arrancar a tinta das paredes. A guitarra deixou de ter a preponderância de outrora e o baixo de Peter Hook foi remetido para segundo plano. Os teclados, desenhando melodias e sequenciações próprias do electro, passaram a estar na linha da frente. A música passou definitivamente a apelar à dança, o que para muitos foi visto como uma heresia e a ruptura final com o legado de Ian Curtis. Com "Blue Monday", os New Order trocaram o tom introspectivo por um caminho que os levava, decididamente, ao hedonismo. Foram os primeiros a assumir aquilo que, mais tarde, se viria a chamar música de dança. Em Inglaterra, o acid-house dava os seus primeiros passos e nascia toda uma cultura em torno dos disc-jockey e da vida nocturna passada em clubes. O Haçienda, clube lendário de Manchester, tornava-se quartel-general de um estilo de vida então emergente e os New Order passavam a ser um dos seus proprietários.A colaboração com Arthur Baker ainda renderia mais dois single, "Confusion" e "Thieves Like Us", mas quando editaram o álbum "Low Life", em 1985, já estavam lançados na alta roda da indústria discográfica. "Perfect Kiss" e "Bizarre Love Triangle", onde alguns ainda viam referências à figura de Curtis, eram canções pop destinadas a chegar a um público mais alargado. John Robie e Stephen Hague, que tinham trabalhado com os Pet Shop Boys, encarregavam-se da produção e transformavam os New Order numa das bandas mais perfeitas da pop. O álbum "Brotherhood" correspondia esse desejo e marcou, provavelmente, o ponto mais alto dos New Order em termos de popularidade.O que não evitou que os projectos pessoais de cada um dos seus membros começassem a tomar preponderância. Bernard Sumner alinha num super-grupo, os Electronica, com Johnny Marr dos Smiths e também Neil Tennant dos Pet Shop Boys, enquanto Peter Hook arranja um cantor de timbre semelhante ao do vocalista dos New Order e lançou os Revenge, mais tarde refundidos em Monaco. A Morris e Gilbert não restava outra coisa senão tranformarem-se nos The Other Two. O álbum "Technique", editado em 1989, foi gravado em Ibiza, já com a banda em convulsões que levariam a uma actividade mais espaçada, e seguia as pistas da cultura DJ então dominante. Quando editaram "World in Motion", acompanhados pela selecção inglesa de futebol, reaproximavam-se da cultura hooligan própria das suas origens tanto quanto se afstam do existencialismo dos primeiros dias.O grupo separou-se para só voltar ao estúdio em 1993. "Republic" já não conseguiu salvar a sua editora de sempre, a Factory, das complicações financeiras em que se encontrava nem a própria banda, que assumiu por esses dias a sua dissolução sem nunca ter oficializado uma situação já insustentável. Quando se juntaram para um concerto no Festival de Reading, em 1998, a notícia foi anunciada em parangonas tal a surpresa suscitada, que permitia supôr o ressurgimento de uma das mais importantes bandas dos últimos anos. Como aliás voltou a acontecer com "Get Ready" e a digressão já anunciada.

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