Livros para beber

Volta e meia num debate qualquer sobre literatura lá surge a questão: "o que pensa dos livros electrónicos?". A pergunta é quase sempre um simples pretexto para que todos os presentes manifestem grande horror pelas novas tecnologias e reafirmem a sua fé na longa vida do livro em papel. São cerimónias de exorcismo para afastar o futuro, durante as quais se espera que os escritores aceitem cumprir a função de oficiantes. Aqueles que, como eu, defendem o livro electrónico, têm alguma dificuldade em fazer-se ouvir.Aproveito o facto de neste espaço ninguém me conseguir interromper, às vaias e pateadas, para explicar melhor a minha posição. Em primeiro lugar o que me interessa nos livros não é a matéria de que são compostos, mas a informação que está contida neles. Se tal informação me chegar amanhã através de um copo de água, tanto melhor - eu bebo-o. Houve resistências, certamente, quando na Mesopotâmia as placas de argila cozida começaram a ser substituídas pelo papiro. "Que absurdo", devem ter exclamado escandalizados os adeptos do velho sistema: "Como é possível que alguém pretenda fixar a palavra num material tão efémero? Um pequeno incêndio e lá se vão séculos de sabedoria" (neste aspecto particular a história deu-lhes razão). Alguns nostálgicos defenderam com vigor, tenho a certeza, a superioridade do cheiro das placas de argila cozida. Não falo em cheiro por acaso. Muita gente aprecia os livros de papel, convém lembrar, porque é possível cheirá-los. João Ubaldo Ribeiro, por exemplo, conta que o seu amor pelos livros começou em criança - por causa do cheiro. Um dia a mãe queixou-se ao marido: "Seu filho está doido", disse ela. "Ele não larga os livros. Hoje estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar". O pai não demonstrou surpresa: "Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro óptimo". A mãe contou que o pequeno Ubaldo havia passado a tarde inteira a ler um dicionário. "Normalíssimo", respondeu o pai: "Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?". "O Lello". "Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação".Conheci um jornalista, já veterano, que não conseguia trocar a máquina de escrever pelo computador porque lhe fazia falta o matraquear do teclado e aquela campainha irritante no final de cada linha (ainda alguém se lembra?). Então um amigo arranjou-lhe um programa de computador que imitava com perfeição as velhas máquinas de escrever. Existe muita gente assim e é por isso que os fabricantes de livros electrónicos se esforçam por os tornar semelhantes aos livros de papel: objectos rectangulares, com uma capa, e, inclusive (fazem-se experiências nesse sentido), que se possam folhear. Ao contrário do que afirmam os seus detractores é possível escrever anotações nas margens das folhas, e levá-los para a cama ou para a casa de banho. Evidentemente, ainda custa um pouco ler um livro num écran de computador. Mas reparem: estamos apenas no princípio; os actuais livros electrónicos hão-de fazer-nos rir, de tão ingénuos e arcaicos, daqui a quatro ou cinco anos. Pode até acontecer que nessa altura existam realmente livros bebíveis, isto é, produtos que tenham rompido radicalmente com o modelo do livro em papel, assumindo formatos e propriedades que neste momento não somos sequer capazes de imaginar.Nos últimos anos tenho vivido quase sempre em viagem. Os meus livros, infelizmente, estão dispersos por diversos países, em caixotes, nas casas de amigos e familiares. Este percalço levou-me a descobrir os arquivos e bibliotecas disponíveis na grande rede. É cada vez mais fácil encontrar em poucos minutos uma referência qualquer, um verso, uma citação, um texto antigo, naquele infinito território virtual; uma pesquisa idêntica numa biblioteca material demoraria muitíssimo mais tempo. A ideia de transportar num único volume, pequeno e leve, todas essas bibliotecas, todos os livros do mundo (será assim um destes dias, quando nos for possível baixar para um livro electrónico, a partir da Internet e a preços reduzidos, qualquer título que desejarmos), seduz-me particularmente enquanto viajante.Para além do espaço que ocupam, do alto preço, da dificuldade de consulta, e de serem ecologicamente danosos os actuais livros em papel apresentam um defeito maior e menos conhecido - têm uma esperança de vida extremamente reduzida. Ao contrário dos livros antigos, confeccionados a partir de trapos, que continuam a demonstrar grande resistência, os volumes actuais, em papel ácido, não duram mais de setenta anos.Que me desculpem portanto os bibliófilos românticos e todos os amáveis cheiradores de livros. Também eu gosto dos livros em papel e tenciono continuar a coleccioná-los mesmo quando os deixarem de fabricar - simplesmente o Livro não termina neles. Muito menos a Literatura.

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