Leixões, um caso de fé

A vontade de um leixonense pode mudar tudo. Até o rumo dos acontecimentos. Foi assim há 41 anos, em pleno Estádio das Antas, foi assim há pouco mais de uma semana, em Braga. Mesmo que o próximo adversário dê pelo nome de Sporting, está tudo em aberto para mais uma final improvável da Taça de Portugal. Porque o Leixões é um daqueles clubes-excepção que confirmam a regra. Um clube de homens do mar, onde as mulheres também mandam. Radiografia de um tomba-gigantes.

Há clubes que parecem imunes às mais elementares leis da probabilidade. Não é de hoje que o Leixões pertence à microscópica divisão de crónicos "tomba-gigantes", nem é nova a sua vocação para obrigar rotativas a tangenciais inversões de marcha. Foi assim há pouco mais de uma semana, quando obrigou os bracarenses a rasgar boletins de inscrição para uma mais que certa excursão ao Jamor, foi assim há 41 anos quando as garrafas de champanhe e os cabeçudos alinhados pelos portistas para a festa da Taça de Portugal tiveram de mudar de mãos, na ressaca de um improvável 0-2 em pleno Estádio das Antas. Lotado, ainda por cima. Conta-se que, na véspera do jogo, os jogadores do poderoso FC Porto terão brindado à conquista de mais um troféu - e que os menos previdentes se endividaram na expectativa de um chorudo prémio de jogo que dificilmente lhes escaparia. Mas da extensa lista de falsos alarmes e lapsos freudianos que faz parte da história do clube destaca-se um episódio-mito que ainda hoje sobrevive no imaginário colectivo, para os lados de Matosinhos. Os contornos já estão desfocados pelo desgaste da memória, mas todos os atalhos vão dar ao mesmo: uma "gaffe" inocente do velhinho "Norte Desportivo". "O F.C. do Porto conquistou a Taça de Portugal numa final totalmente portuense". A manchete, improvisada pelos jornalistas de serviço para testar a qualidade da impressão minutos antes do final do jogo, acabou por não passar o teste da realidade. E no amarelado "broadsheet" percebe-se ainda o título vermelho desbotado "F.C. do Porto, 4 - Leixões, 1". O jornal emendou a mão, mas as sobras da primeira versão seguiram o destino do costume - e, na manhã seguinte, os leixonenses compraram sabão azul, bacalhau e peixe fresco embrulhados em alguns exemplares da não-notícia."Foi uma bronca medonha", lembra o sexagenário Oliveirinha, autor do golo que confirmou a vitória do clube de Matosinhos e que lançou o Leixões na sua primeira aventura europeia. "Alguns jornais até foram parar ao Brasil", acrescenta a velha glória do clube, com os pés bem assentes no relvado do suado Estádio do Mar. Trinta e cinco anos depois de uma extracção do menisco que pôs um fim prematuro à sua carreira, Manuel Fernando Oliveira Santos continua provavelmente a ser - lado a lado com a compilação "Leixões Sport Club: Marcos Importantes da sua História" - a melhor fonte de memórias dos anos dourados do clube."A partir daquela vitória, o pequeno deixou de ser pequeno e o grande deixou de ser grande", resume Oliveirinha, também conhecido por um par de alcunhas: "rato" entre os sócios, por usar e abusar do truque de simular apertar as chuteiras para roubar a bola quase das mãos dos guarda-redes; "bruxo" pelo religioso treinador Filpo Nuñez, que gabou, precisamente na histórica final da Taça, o seu invulgar dom para adivinhar a baliza em que marcava os golos. Sem grande ciência, garante Oliveirinha: "Só apontava para a baliza mais próxima no momento da aposta". Foi o próprio técnico argentino o primeiro a acreditar na vitória que, segundo a edição de "O Comércio do Porto" do glorioso dia 9 de Junho de 1961, rendeu a cada jogador 2700 escudos. "Quando chegou ao Leixões, Filpo Nuñez perguntou se lhe davam 35 contos se ganhasse a Taça. A direcção riu-se e fez o contrato", aponta Oliveirinha, lembrando uma frase memorável do argentino: "O Leixões deixou os calções e passou a usar calças compridas".Depois, foi a aventura europeia com a participação na Taça dos Vencedores das Taças. A estreia, na Suíça, foi desastrosa: uma goleada (6-2) imposta pelo La Chaux-de-Founds. Mas a segunda mão reservava uma reviravolta (5-0) que ainda hoje é o mais expressivo virar de mesa de sempre nas competições europeias. "Os suíços nem massagistas trouxeram. Vinham cá de férias, ficaram no Hotel Porto Mar e alguns até foram à praia", recorda Oliveirinha, autor de dois golos, um dos quais "arranjado com a mão". "Agora, o mais fácil é atirar-se para o chão, mas dantes o campo era pelado...", justifica-se. Segunda eliminatória, outros problemas. Depois de um empate no Estádio José de Alvalade (a UEFA obrigava que se jogasse num relvado) com o Progresul, o Leixões foi à Roménia, onde todo o plantel passou fome. "Um defesa emagreceu sete quilos". Na altura, a receita usada foi uma lavagem cerebral à base de hino nacional e evocações da família. Como na guerra. "Às vezes, ainda choro quando conto isto", começa Oliveirinha em tom de pré-aviso. "Comovemo-nos todos no balneário, fomos para o campo como leões e demos uma volta de honra depois do golo do Osvaldo". A imprensa local apelidou-o "Di Stefano". O regresso foi feito no "foguete" e uma pequena multidão invadiu a gare das Devesas.Acabou por ser o teimoso anti-comunismo primário de Oliveira Salazar o principal responsável pela eliminação da equipa portuguesa. Prematura, segundo alguns. "Tínhamos equipa para muito mais", insistem os veteranos que acompanharam Oliveirinha no seu regresso, encomendado pela PÚBLICA, ao relvado. Com acesso vedado em Portugal, a equipa MotorJena recebeu na ex-RDA o Leixões, obrigado a disputar as duas mãos no terreno do adversário. E tudo pareciam contrariedades: a neve intensa não impediu a equipa portuguesa de conseguir um empate, e por isso os alemães marcaram o segundo jogo a uns 50 quilómetros mais a Norte, mantendo a essencial equipa de arbitragem. Já para não falar na habilidade do técnico de equipamentos leixonense, que resolveu espalhar sebo na sola das chuteiras. O efeito foi o inverso do pretendido. "Parecia patinagem artística"."A humildade é um trunfo", garante Oliveirinha, enquanto pega na Taça que foi entregue ao Leixões pelo então presidente da República almirante Américo Thomaz. Nem parece aperceber-se da fenda na base de madeira. "Já estamos a precisar de uma nova", insinua uma secretária do clube, atarefada com os pedidos de acreditação para a final. No café do complexo desportivo, o tema é recorrente, por inesgotável. "Vai ser preciso pedir reforço policial, mas para tomar conta das casas", brincava um adepto. "Não é preciso", sossega uma funcionária: "Os vândalos também vão".No início da conversa com a PÚBLICA, Oliveirinha deixou claro que "Fátima é Fátima", mas um par de horas depois, já com o leve aroma a maresia, já era capaz de abrir uma excepção: "O jogo é a 12 de Maio e depois passo os dias 13 e 14 mais descansado". Filipe Freitas, que por segundos se havia escapado à minitertúlia, regressou exibindo uma fotografia na qual, montado a cavalo, envergava uma bandeira leixonense. "1956 Braga, 1 - Leixões, 1", desenhava-se no verso. Hoje, alugam-se autocarros, fala-se num comboio e há até quem projecte uma camisola rubro e branca capaz de cobrir o Estádio Nacional. "Garrida, vistosa como que personifica a alma vibrante de uma terra tão apaixonante como devota do seu Leixões", imortalizou José Maria Pedroto, também ele formado nas escolas daquele clube - dois anos júnior, dois anos sénior - no tempo que lhe sobrava na empresa MAR (Mestre e Armadores Reunidos). Conta-se que o seu patrão, o mestre Inocêncio Rato, lhe dedicava a seguinte frase: "Se fosses meu filho, colocava-te numa redoma e só te tirava aos domingos para jogar futebol".O "Zé do boné" terá sido, na opinião de Joaquim Monteiro, um dos pontos de partida para uma rivalidade histórica com o FC Porto que ainda hoje se percebe pela ridícula percentagem de leixonenses que escolhem torcer pela equipa das Antas, na I Liga. "Chegou ao Belenenses ao abrigo do serviço militar e foi para o FC Porto a custo zero", recorda o ex-secretário da Assembleia Geral. Com uma pontinha de angústia, acrescenta o caso do jogador Eduardo Gomes, "que foi para o FC Porto porque o Leixões não pagava o salário". E há ainda a tal final das Antas com vitória antecipada dos "dragões". Mas a esse jogo Joaquim Monteiro não assistiu. "Não aceitei bem que o jogo fosse nas Antas", admite, aos 75 anos, comodamente instalado no café Lua, bem no centro de Matosinhos, e com os olhos azuis já a brilhar. Entusiasmado pela conversa, um outro cliente debruçou-se para desvendar "o domínio de secretaria" que terá levado o FC Porto a conquistar um campeonato de reservas: "Éramos rapazotes de 18 anos e o FC Porto levou o plantel principal, umas bestas que pesavam uns 100 quilos". "As jogadas de bastidores já vêm de longe", lamenta.Foi por essas e por outras que João Serrão passou a torcer pelo Sporting. Muito por sua culpa, quem desce a Rua do Godinho, ainda antes de entrar na dos Heróis de França, já vai sentindo o cheiro a lulas tostadas na brasa, pimentos assados ou sardinhas embrulhadas em punhados de sal. A "Casa Serrão" saltou dois números da rua, o fogareiro já não está na calçada e a irmandade de emblemas e recortes do Leixões e do Sporting já não forram as paredes do estabelecimento. Mas o senhor Serrão, "nascido a 50 metros", continua a oferecer o pulso quando se apresenta. Ainda escorria gordura do peixe quando fez questão de abandonar o serviço para revelar um "Record", edição de 1975. Chegou-se à mala do velhinho Seat, "que só serve para ir à lota e para dormir nos intervalos", e puxou um cordel azul, engenho que lhe permitiu abrir a porta do condutor e chegar-se aos bancos da frente. "Fui atleta do Leixões e joguei com o actual presidente, José Manuel Teixeira", diz, ao apontar para a constituição da equipa. E porquê a simpatia pelo Sporting? "Porque o Estádio José de Alvalade foi o único relvado a oferecer-se para acolher o Leixões na Taça das Taças". E só por isso. Porque a paixão, essa fica reservada para o Leixões. A paixão que o levava a acordar dias a fio às cinco da manhã, para treinar no campo de Santana, percurso com paragem obrigatória nos "moletes do tio Alberto". "E sabia que pegava às oito na casa de móveis".A dedicação de Oliveirinha é ainda mais arrebatadora. Na altura em que nos balneários se usavam socas de madeira, "os jogadores", garante, "choravam quando não eram convocados". "Como crianças". Só assim se percebe a sua teoria sobre a colocação do emblema no equipamento - "Junto ao coração para que cada um sinta o clube" - e a veracidade de um par de episódios que facilmente transformam "três fracturas no nariz" num conto para crianças. A "unha arrancada a sangue frio", por exemplo: que obrigou Oliveirinha a calçar chuteiras dois números acima do seu para continuar em jogo e a encharcar em éter um penso de dez em dez minutos. Já para não falar no incidente da costela partida. "Segurei-a com estes quatro dedos durante o encontro". Os avisos do departamento médico eram tão improcedentes como as queixas sobre as meias rotas. "Calça-as com o calcanhar virado para cima", respondia o responsável pelos equipamentos.Um dos "sete magníficos" - os sete atletas da final, de 61 formados no Leixões -, Oliveirinha recorda uma outra alegoria: a dos "bebés". O inventor foi o presidente Alfredo Santos. "Perante as dificuldades financeiras, pegou em quatro juniores (Praia, Horácio, Neca e Chico) e apresentou-os ao treinador António Teixeira". O jornalista de "A Bola" Alfredo Farinha baptizou a geração de ouro, e a estratégia "bebés de Leixões" está agora a ser retomada pela actual direcção do clube, presidida por José Manuel Teixeira, cuja palavra de ordem é precisamente "o regresso às origens".A escola de futebol "João Faneco" é disso um bom exemplo. Dos seis aos 13 anos, os miúdos passam pelos níveis "dente de leite", "bebés do mar" e "escolinhas do mar". "Há dois anos, tínhamos 50 crianças; no ano passado, 120; e até ao final da época, esperamos 160", refere o técnico Pedro Vale, um dos responsáveis pelo projecto. Só o actual plantel principal conta com uma dúzia de jogadores fruto desse investimento: Pedras, José António, Nené, Barros, Tozé, Bruno China, Hugo Ramalho, Marco Aleixo, Castanho, Abílio, Chico Maranhão e Nuno Silva. "A mística, o amor e a paixão criam-se muito cedo", diz, a propósito, o presidente do Leixões, principal responsável pela estabilização de um clube entregue ao abandono. "O Leixões era zero. Só tinha o nome. O relvado era quase um baldio, não havia computadores e os jogadores dispunham de um chuveiro com uma área de um metro por três", enumera Henrique Calisto, presidente da Assembleia Geral. Recuperado foi, nomeadamente, o bairrismo característico de um clube, cujos relatórios de contas da década de 60 mencionavam periodicamente o apuro da pesca da sardinha - por cada cabaz, os pescadores contribuíam com um tostão para a construção do actual Estádio do Mar, uma autêntica demonstração de fé clubística. Hoje, o Leixões tem um património considerável e reabilitou o associado à antiga, militante até ao fim: aquele que, ao domingo, vai à missa e ao futebol com a família; que colabora com o que pode e que puxa pela equipa no momento da derrota. Não admira, por isso, que 50 por cento dos cerca de seis mil sócios pagantes sejam mulheres e que a claque do Leixões seja (o erro é calculado) uma das mais participativas dos campeonatos portugueses. "Quando o jogo começa, nós levantamo-nos para apoiar a equipa e a claque adversária senta-se para ver o jogo; no intervalo, os leixonenses sentam-se para descansar, enquanto os adeptos da outra equipa se levantam para esticar as pernas", caracteriza um jovem adepto, que garante que os preços dos bilhetes aumentam onde quer que o Leixões se desloque. "É rentável, porque somos sempre muitos".De um Leixões "descapitalizado" até se tornar um "projecto credível" foi um passo. E até a família do presidente ajuda. O filho, Jorge, é director desportivo e a esposa, Sílvia, encarrega-se da tesouraria e do "marketing", acumulando as funções de delegada nos jogos da Taça. A Câmara Municipal de Matosinhos é um parceiro regular, mas, nas contas do Leixões, é o sogro de José Manuel Teixeira - do Grupo Gel, de peixe congelado - a principal tábua de salvação.Foi precisamente a mulher do presidente a primeira a aperceber-se e a alertar as entidades competentes para a incompatibilidade do jogo no Jamor (12 de Maio) com a última jornada do campeonato nacional da II Divisão B (curiosamente um FC Porto B-Leixões, no dia 11). Na altura, os responsáveis da Federação Portuguesa de Futebol sorriram à audácia do modesto clube matosinhense, ainda longe da etapa final; agora, terão de descalçar a bota. Sorriem os premonitórios jogadores: Nené e Marco Aleixo cujos contratos prevêem uma cláusula "interessante" atingida a inalcançável final...Só com alguma sorte se consegue ver o terreno de jogo coberto de gaivotas, que recolhem pacientemente as sementes de tratamento do relvado. Mas, a mais de 30 anos de distância da inauguração do Estádio do Mar, facilmente se desvendam os símbolos de um clube fundado em 1907. Não só a raqueta de ténis, o bastão de criquete e a bola de borracha com capa de couro que um dia fez crescer o grupo Leixões Foot-Ballers. Mas o amor, a coragem, o voluntarismo e a determinação, propriedades do adepto leixonense e do pescador, também ele um leixão.Do pequeno Leixões Sport Club provavelmente só se voltará a falar nas vésperas do dia 12 de Maio, quando defrontar o poderoso Sporting Clube de Portugal. As notícias serão ou não de uma vitória anunciada. Lá dizia o periódico "República", no rescaldo da final da Taça de 61: "A ração não é para quem se talha, mas sim para quem a merece".

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