Isto não é um "peep-show"

Entrar num palco total - um quarto de pensão; uma torre de relógio; um corredor ou um armazém de madeiras - e, com o actor que aí se encontrar, partilhar a construção do produto teatral. Descobrir esses "Seres Solitários" é (re)descobrir o medo e a angústia provocados por um estar a dois, sem regras conhecidas. É só pegar num mapa e partir à descoberta por Lisboa destes cinco solos de Lúcia Sigalho.

Por volta das dez da noite a actriz e encenadora Lúcia Sigalho entra na pensão Flor da Ribeira, em Lisboa, e sobe a escadaria escura e irregular que acaba por desembocar num patamar mais iluminado onde uma porta se abre para uma recepção improvisada. Por detrás do balcão forrado a linóleo, uma mulher de cabelos brancos olha para uma televisão estrategicamente pendurada num dos cantos. Volta a cabeça apenas para um olhar um tanto vago ao pedido da chave do quarto 303 - que está numa prateleira alta onde ela não chega. Já por detrás do balcão, Lúcia Sigalho, mais alta, com a chave na mão, explica que é da companhia de teatro e que a partir desse dia vai regressar à pensão todas as noites por umas horas. Para fazer um espectáculo de teatro. A recepcionista e a sua silenciosa companheira africana trocam um olhar e sorrisos cúmplices. Espantada a primeira acaba por dizer: "Então o quarto é para ensaiar!".Não é. É o espaço cénico de um dos cinco solos que compõem "Seres Solitários", a nova proposta da companhia Sensourround, desta vez com um elenco de convidados - para além de Lúcia Sigalho, Afonso de Melo, Ângela Vidal, Carla Bolito e Fátima Belo - que, cada um num espaço diferente (um quarto de pensão; uma torre de relógio; um corredor e um armazém de madeiras, todos na zona da Rua D. Luis I, em Lisboa), vão receber, de vinte em vinte minutos, um espectador diferente. Poderá descobri-los, entre as 22h e as 00h30, através de um mapa à disposição na sede da companhia, o número 31 da Rua D. Luís I, e partir então para o medo e a angústia provocados por uma experiência sem regras conhecidas.Os corredores da pensão Flor da Ribeira formam uma estrutura labiríntica, na penumbra. Cada canto emana cheiros e sons muito distintos. De outro patamar chegam acordes de música indiana e por todo o lado paira o barulho de pratos e talheres a serem remechidos. E de televisores. O quarto 303, num canto, é minúsculo mas mesmo assim tem um beliche de duas camas e mais uma individual, ambas sem lençóis, com os colchões à mostra. Enormes plásticos (que cobrem vidraças partidas) quase não deixam adivinhar as portadas de uma varanda. Estas abrem-se para a Praça D. Luís I, onde se ergue também o edifício dos CTT que termina numa torre dominada por relógio luminoso - parado. Com um olhar a encenadora explica que a torre é o espaço de outro dos seres solitários.Antes disso, no entanto, na recepção, a senhora está curiosa. "Mas as pessoas não vão fazer muito barulho, pois não?". "Pessoas? Não, não me expliquei bem", responde Lúcia Sigalho. "Só vem uma pessoa de cada vez". Mas por mais que tente explicar, simplificando o que está por detrás de "Seres Solitários" surgem cada vez mais dúvidas e as duas mulheres acabam por ficar para trás a falar baixinho por entre sorrisos semi irónicos. "Não são só elas que pensam numa coisa entre a prostituição e o não sei quê. Acho que a aproximação das pessoas a este tipo de proposta é normalmente muito rasteira: 'Ah. Só para uma pessoa, tipo peep-show!'", comenta Lúcia Sigalho.À medida que avança pelas ruas desertas vai conversando: "Nunca entendi os teatros como acho que a maioria das pessoas os entendem. Comecei a fazer teatro num sítio onde não havia um teatro, em Santarém. E quanto vim para Lisboa comecei a trabalhar com um homem que dizia: 'Não vejam teatro, o teatro é muito mau. Leiam, vão à Cinemateca, a exposições de artes plásticas...' Acho que foi um muito bom conselho". Entretanto, depois de escadas cada vez mais íngremes, plataformas de ferro dão acesso ao varandim da torre do relógio. Só uma capa preta pendurada num corrimão indicia a passagem de mais alguém por ali. A toda a volta, Lisboa e o rio muito iluminados impõem-se como um cenário cinematográfico. E ninguém mais aparece. Pode apenas tentar imaginar-se quem habitará aquele espaço - "não há nada para mostrar", diz Lúcia Sigalho. É um trabalho de um (actor) para um (espectador). Cada experiência é única, irrepetível. Vive desse estar a dois na experiência. Não há forma de poder antecipá-la ou ensaiá-la. Apenas é possível vivê-la."Houve uma noite em que estava em palco a fazer 'Gaspar'. Havia poucas pessoas e um senhor com as filhas, na primeira fila, mesmo em frente à minha mesa, não se calavam. Como se estivessem a ver televisão, ou como se o sítio onde eles estavam os tornasse invisíveis. Como se eu não estivesse ali. Parei o espectáculo", conta Lúcia Sigalho, procurando as origens da ideia de "Seres Solitários. "Tenho constatado que as pessoas não acreditam que estão no mesmo espaço, no mesmo sítio, ao mesmo tempo que o actor. Talvez em geral, na vida, a televisão, a internet, dêm uma sensação de deslocação em relação aos acontecimentos, mas isso é só uma interpretação. A base é que as pessoas parecem não saber estar num espaço partilhado". Umas ruas mais à frente, perto do enorme armazém onde a companhia Sensourround está sediada, é preciso subir mais uma escadaria. No alto uma porta abre-se para um corredor que se estende por vários metros, sempre muito estreito. Lá ao fundo uma cadeira iluminada por uma luz fosfurescente parece um reflexo de outra igual, logo à entrada. É mais um dos espaços a ocupar por "seres solitários", uma actriz que ao abrir da porta pára tudo e fica a olhar, não revela nada - "tudo vai viver da descoberta, da surpresa"."Preocupa-me integrar no meu trabalho uma sensação minha, de que há algo nos espaços teatrais que não funciona. Procura-se o quê?", continua a encenadora evocando um outro espectáculo da companhia, "Procura-se". "Procura-se o outro, procura-se através do outro também uma identificação. E agir sobre ele. Esta peça implica todo um trabalho que é feito a pensar num outro. Às vezes sinto-me a encenar uma personagem ausente". Mas que acaba por se tornar central. E que acontece a sós com um outro?"Deixa-se de fora tudo o que é mais exibicionista. Entra-se numa zona que não é de personagem. Não há personagem, há um estar, que tem que ser trabalhado, muito mais trabalhado. Vai-se mais ao essencial e ele é sempre mais desafiante". Porque "as pessoas não suportam estar sozinhas, não suportam não estar enquadradas. Não suportam não saber exactamente as regras do jogo e eu sou assim", conclui. "Vivo no mesmo lugar. Mas sinto saudades de um tempo que nunca existiu, sei que as coisas podem ser diferentes". Como o saberão os actores: "A dúvida e a dificuldade permanentes que atravessaram este espectáculo estão lá, escarrapachadas. Por um lado a vontade, por outro lado a recusa, o medo". Será uma peça tão difícil para um actor como pode ser para um espectador mas existe um desejo a partilhar com o exprimido pela encenadora: "Este trabalho parte de uma recusa total e frontal ao mega evento. É procurar uma amplitude e uma ressonância do trabalho através do receptor. Fazer com que as coisas não passem sem eco, sem efeito. Tem a ver com um desejo de ter as pessoas comigo. Não quero ter consumidores do produto que eu fabrico".

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