Billy Bragg

%Eurico Monchique

"So join the struggle while you canThe revolution is just a T-shirt away"Billy BraggBilly Bragg pode ser pouco conhecido fora das ilhas britânicas, mas os seus conterrâneos, mesmo os que politicamente lhe estão opostos, consideram-no um pequeno tesouro nacional. Aos 46 anos e com duas décadas e meia de carreira, a colectânea dupla "Must I Paint You a Picture" é uma oportunidade para mostrá-lo a quem o desconhece, recordar a quem se lembra, e elaborar uma linha musical, social, política e pessoal, que ligue e relacione logicamente (ou não...) "A new England", de 1983, a "Take down the Union Jack", de 2003.Bragg é, apenas, o grande trovador revolucionário e contador de histórias de Inglaterra. Nos inícios dos anos 80, e após uma passagem fugaz pelo grupo punk Riff Raff e uma inesperada (mas certamente marcante) estada no exército, lançou-se a solo. Os primeiros discos são apenas ele e a sua guitarra eléctrica. Com arranjos minimalistas e uma voz anasalada mas assertiva, definiu desde logo os vectores que não mais largaria: política e amor, que nele estão sempre interligados. O amor é uma luta entre campos por vezes bem delineados; por vezes a linha distintiva entre bons e maus é ténue, e não se sabe quem luta por quem e quem vai trair quem. Era folk, perguntam? Sim. No trilho das suas assumidas influências americanas, Bob Dylan e, especialmente, o grande Woody Guthrie. Mas era mais do que isso. Era o culminar de toda uma tradição britânica, desde os madrigais medievais até aos Sex Pistols. A mesma linha que reclama a poesia como mais uma forma de luta. Que se reclama da dicotomia campo/cidade, operários/patrões, povo/políticos. Sim, uma linha esquerdista, revolucionária, e que encontrou na década de 80 um campo fértil. A primeira-ministra conservadora Margaret Thatcher lançou uma ofensiva contra os sindicatos, os operários em geral e os mineiros em particular. E foi aí que Bragg se distinguiu. Integrou o movimento musical Red Wedge (com os Communards, Smiths ou Style Council), tocando em cada universidade, bar de cidades em desagregação ou concerto de beneficência. No seu canto, estavam sempre as lutas, as sequelas que deixam quando se travam entre povos, entre irmãos. As caças, as perseguições que corroeram a história inglesa, eram puxadas pelo tempo, filtradas através do americano Guthrie e adaptadas aos tempos modernos.São destes primórdios heróicos temas como "There is power in the union" e "Help save the youth of America", onde cantava "you can fight for democracy at home and not in some foreign land ", palavras tão actuais. Mas também desde o início Billy mostrou não ser apenas (e já seria muito) um sério e empenhado lutador. As suas letras estão repletas de factores humanos muito íntimos, de humor e afecto pelas pessoas. E pelas mulheres que ele ama. Uma frase tão simples como "I'm the milkman of the human kindness" condensa bem o homem e o artista, de qualidades que atraíram para o pé de si nomes tão importantes da cena musical liberal como Michael Stipe e Peter Buck (REM), Johnny Marr (ex-Smiths), Michelle Shocked e Nathalie Merchant (ex-10.000 Maniacs) e a malograda Kirsty MacColl. Clash num homem só. À entrada da década de 90, Bragg abandonou o minimalismo instrumental e, com o álbum "Don't Try This At Home" e a ajuda dos REM, enveredou por um som mais pop, de que é cânone o single "Sexuality", hino de defesa da liberdade sexual e do direito à diferença e da "Internacional do amor": "I had relations, with girls from every nation", exactamente. Mais tarde, a filha de Woody Guthrie ouviu Bragg ao vivo em Nova Iorque e, conquistada pela sua versatilidade a cantar folk, blues ou country, propôs-lhe trabalhar algumas das mais de 2500 (!?) letras que o pai havia deixado para músicas inacabadas. O resultado foi "Mermaid Avenue", gravado com o grupo de alt.country americano Wilco. Neste "The Essential of..." foram recuperadas peças tão supreendentes como "Ingrid Bergman" (hino de devoção à estrela sueca), "My flying saucer (de fuga para o espaço), e o mais provável canto de armas "All you fascists bound to lose".Desde aí, e acompanhado pela sua banda The Blokes, Billy Bragg tem aperfeiçoado e refinado a abordagem musical, recolhendo elementos da soul (é fã de Smokey Robinson ), gospel e salmos em gaélico, e continuando assim o vaivém entre as sonoridades de base americana e inglesa. Aliás, é um defensor acérrimo da cultura da sua terra, apesar de ter da mesma uma versão muito ecléctica, pois reconhece nela elementos de muitos folclores de outros países. Continua a ter uma intervenção política forte, tendo escrito, entre outras, um projecto de reformas da Câmara dos Lordes e uma extensa e contundente declaração contra a lei do Governo trabalhista que, sob o pretexto de queixas de barulho da música folk nos pubs, considerou ilegal qualquer reunião de mais de duas pessoas a cantar ou tocar em bares sem autorização prévia. Para além da violação dos direitos individuais de cidadãos em espaços não estatais, esta legislação significaria, para Bragg, o fim de um linha de centenas de anos de evolução da cultura popular britânica, que nestes informais encontros se integraria e renovaria e relembraria. No CD de bónus da primeira edição, estão ainda raridades, temas de artistas caros a Bragg e nunca antes editadas, como a espectacular versão de "Fear is a man's best friend", de John Cale, "Seven and seven is", um dos temas do idolatrado "Forever Changes" dos Love, ou "She smiled sweetly" da dupla Mick Jagger/Keith Richards. É pena faltar "She's leaving home" dos Beatles, que foi, em single, único nº 1 de Bragg, em 1988. "Must I Paint You a Picture" é, assim, um documento essencial para se perceber a carreira daquele a quem já chamaram "os Clash num homem só", a prova de que se pode fazer a ponte entre referências tão díspares como a energia punk e a delicadeza dos madrigais medievais, de que se pode ser certeiro e poderoso quer em arranjos minimais quer em quartetos de cordas luxuriantes. No seu controlo da língua inglesa, nas suas figuras de estilo características, nos inesperadas apontamentos históricos ("Camelot for Jack and Jacqueline, Che Guevara highway filling up with gasoline"), num tempo em que quase todos se calam ou nem chegam a ouvir, William Bragg é uma voz que não pode ser esquecida.

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