As moscas afinal são nossas amigas

É indesmentível que as moscas não têm boa imagem social: ve-mo-las a pairar sobre excrementos de animais e a enxamear crianças famintas em África. Enxotam-se inutilmente com as mãos, há à venda líquidos fabricados de propósito para as matar por vaporização, criaram-se objectos chamados mata-moscas e armadilhas feitas de fita-cola onde ficam grudadas até deixarem de dar às asas. Em poucas palavras: são rotuladas como pouco higiénicas e incomodativas. "Ninguém gosta de moscas" e, que não haja engano, António Keating também as enxota e mata ocasionalmente. "Quando as tenho em casa". Mas aprendeu a ver nelas o que mais ninguém vê. Nem os mais íntimos, como a sua mulher, que "abomina" o poema que guarda em casa em lugar de destaque em homenagem das ditas: "Vocês, as familiares/ inevitáveis gulosas/ vocês, moscas vulgares/ Rápidas moscas divertidas/ perseguidas, perseguidas/ pequenitas, malcriadas/ Vocês, velhas amigas/ evocam-me tanta coisa."
O poema As Moscas, do espanhol António Machado, "evoca tardes de calor sufocante com moscas a pairar". Num dos versos também se diz delas: "eu sei que já pousaram sobre as pálpebras rígidas dos mortos."
António Keating, que é natural de Coimbra e herdou o apelido dos seus ascendentes irlandeses, é entomólogo forense, profissão em que a ciência que estuda os insectos (entomologia) ajuda na investigação de crimes, sobretudo homicídios. E os que mais o ajudam no trabalho que desenvolve desde 2003 são mesmo as malfadadas moscas. Aí reside, em parte, o seu "fascínio" por elas.
Se alguém morre, assassinado ou não, e o seu corpo é abandonado na natureza é como se fosse emitido um convite para um banquete onde uma multidão de insectos pode comparecer: as moscas são atraídas "por odores de decomposição que não perceptíveis para humanos" mas também aparecem as formigas, as vespas, os escaravelhos e, mais à frente no tempo - quando o nível de humidade do corpo é maior e já há bolores - as centopeias, os bichos-de-conta e também podem chegar aranhas. A lista pode chegar a muitos "convidados", dependendo da fase de decomposição do cadáver.
Mas naquela refeição que se inaugura na natureza não vêm todos ao mesmo. É como se se chamassem uns aos outros. Nem todos vêm comer o prato principal, há quem venha comer quem vem comer - as vespas vão parasitar as larvas de moscas, há escaravelhos que se alimentam de larvas de moscas - "numa enorme cadeia alimentar em que uns comem-se aos outros, como é sempre na natureza. Aquilo para mim é vida, é uma continuidade", comenta Keating.
A refeição inicia-se pouco tempo depois da morte e, caso o cadáver não seja encontrado, pode prolongar-se durante alguns meses - em casos extremos, de ambiente húmido e quente, pode ser apenas em 20 dias - até que só reste o esqueleto humano.
A descrição pode parecer crua, mas o processo não é muito diferente do de um daqueles documentários do National Geographic em que os animais tratam de reduzir em pouco tempo um corpulento animal, como um hipópotamo, a uma carcaça.
"Somos animais. Para a natureza sermos pessoas é indiferente", comenta o biólogo de formação, de 47 anos. "A ecologia sempre me fascinou: comer ou ser comido, comer e arranjar estratégias para não ser comido. Não sobrevivemos sem matar, mesmo os mais pacifistas e vegetarianos".
Frascos com nomes de pessoas
Ao laboratório onde trabalha, no Instituto de Ambiente e Vida, da Universidade de Coimbra, chegam frasquinhos de plástico de tampa vermelha, como os que são usados para as análises clínicas, com insectos mantidos em álcool e etiquetas com dezenas de nomes de pessoas como aqueles que mantém no armário de ferro dos "casos arquivados": Maria, Idálio, Carlos, Reinaldo, José, Américo são alguns primeiros nomes, num dos rótulos lê-se "desconhecido".
Dentro dos pequenos recipientes bóiam moscas adultas, pupas (uma espécie de casulos de onde saem as moscas) e larvas. No rótulo está também a "data de desaparecimento" da pessoa, da autópsia e o sítio do corpo onde foram recolhidas as amostras: "cabeça e pescoço", "face e cabelo", "ferimento no peito".
Os insectos que chegam até ao entomólogo, vindos do Instituto de Medicinal Legal e da Polícia Judiciária, foram encontrados em corpos de pessoas que se suspeita terem sido vítimas de assassinio. Nenhum pedaço de corpo humano chega até António Keating para investigação. Essa parte é com os médicos legistas que fazem as autópsias.
A ele pedem-lhe sobretudo que descubra uma coisa: quando morreram aquelas pessoas? E o seu trabalho começa quando termina o dos médicos legistas, que vão tendo cada vez menos sinais (temperatura dos órgãos ou a rigidez do corpo) para saber quando morreu uma pessoa a partir das 24, passadas 72 horas passar a ser quase impossível.
Já o estudo dos insectos permite determinar até cerca de 40 dias o intervalo da hora da morte, com uma margem de erro que não ultrapassa os dois a três dias, às vezes com a precisão de horas. Quando falamos de anos de abandono de um corpo pode-se saber o mês e a estação em que a pessoa morreu.
E isso só é possível através de um conhecimento profundo do ciclo de vidas de insectos tão mal queridos como as moscas, as primeiras a chegar ao local do crime. Mas moscas há muitas e as estreantes são mesmo as Calliphore e as Lucilia Sericata. Fascinantes mas não ao ponto de as ter baptizado, é que dizer que chegam primeiro as Lucília sempre soa melhor que dizer que chegam primeiro as varejeiras - são as primeiras testemunhas, podem chegar em apenas 24 horas da morte e dentro de minutos, na presença de sangue e outros fluídos de corpo.
Pode haver quem ache mórbido o seu trabalho, o de analisar os animais atraídos por corpos em decomposição, mas "onde os outros vêem morte eu vejo vida", muita - um corpo humano feito cadáver na natureza é "um ecossistema temporário e é aquela vida que me vai dar resposta à morte".
Desde o ovo até ao nascimento da varejeira podem passar de dez a 30 dias: a mosca deposita os ovos depois de 23 horas, estes darão origem a uma larva que tem três fases de desenvolvimento (e aqui podem passar de 27 a 130 horas), da pupa ao nascimento da mosca podem passar 143 horas.
Os seus objectos de análise são então pedaços das várias fases da vida das moscas: da larva, à pupa, à mosca - um processo evolutivo sem fim em que se podem gerações de moscas atrás de gerações de moscas, um insecto que pode durar até dois anos.
A presença de uma segunda geração de moscas num cadáver aponta para "um tempo alargado de morte", como o de uma senhora que foi morta com uma faca da cozinha, no Norte do país. Os vizinhos não a viam há três semanas e o tempo da morte "foi confirmado pelos insectos: tinha larvas, pupas, pupas eclodidas com moscas adultas já saídas e a pôr ovos". Essa data coincidiu com a visita de um familiar que terá estado envolvido no homicídio.
O caso mais recente está no frigorífico do laboratório dentro de um vulgar Tupperware: são "duas larvas, uma mosca, um escaravelho. Todos retirados do mesmo cadáver". É preciso medi-los, vê-los ampliados ao microscópio para detectar pequenos pormenores que denunciam diferentes fases de desenvolvimento.
Basta então a observação de insectos para saber quando morreu aquela pessoa? Era bom que o processo fosse tão simples. Para a arte "da interpretação da colonização de insectos" entram na equação outros factores. Um deles, dos mais importantes, é a temperatura em torno do dia da morte.
No tempo calculado para o ciclo de um insecto entra o tempo atmosférico. Uma mosca desenvolve-se mais depressa no calor do Verão do que no frio Inverno. Um dos dados fundamentais do seu trabalho passa então por pedir ao Instituto de Meteorologia as temperaturas em torno do período estimado da morte: umas três semanas anteriores, na estação meteorológica mais próxima do sítio onde foi encontrado o corpo. Somados estes elementos ainda é preciso fazer cálculos matemáticos no computador, introduzindo dados como o tamanho exacto das larvas, por exemplo.
No início, antes de ter dado formação à Polícia Judiciária sobre a forma correcta de recolher amostras, ia até ao local de crime para observar o contexto onde o corpo tinha sido encontrado. Hoje lê os relatórios que lhe chegam. Quando vêm do Instituto de Medicinal Legal a informação é mais incompleta porque é já recolhida na autópsia. "Falta o contexto".
A fauna de insectos é diferente num carvalhal ou num pinhal e saber reconhece-los pode ser útil para confirmar o local do crime, para perceber se houve deslocação do corpo e o crime terá sido cometido noutro local e transportado até ali, onde foi encontrado.
Na equação também entram outros aspectos e aqui Keating recorda o seu primeiro caso. "Era o de um homem raptado e morto à facada. Para o entomólogo a presença "de moscas já adultas e larvas muito desenvolvidas" não batia certo com uma morte que a Polícia Judiciária estimava ter acontecido há apenas cinco dias. O que lhe pediam era que confirmasse essa data.
Depois de falar com os agentes da PJ percebeu que o corpo tinha estado enrolado num tapete mas depois deixado à beira do rio durante horas enquanto se esperava pela ambulância. "O corpo foi adulterado devido ao tratamento que lhe foi dado". A confirmação dos cinco dias foi encontrá-la no tapete onde o homicida tinha enrolado o corpo e que já estava guardado numa garagem, onde encontrou larvas que confirmavam os cinco dias. "Os insectos são muito assertivos, não enganam. Assim que puderem colonizam o corpo". Quando um corpo é enrolado num tapete, mantido no frigorífico ou enterrado também é adiada a colonização.
No caso do homem enrolado no tapete sabe que os "os supostos homicidas" foram apanhados. Mas o que mais lhe falta é mesmo o desfecho dos casos que lhe chegam em envelopes de papel pardo com lacre vermelho.
Curiosamente dos poucos desfechos de caso de que teve conhecimento nada tinham a ver com o mundo da justiça. Era um caso particular. Foi o dono de uma padaria que fornecia um hospital e que acreditava que estava a ser boicotado: aparentemente tinha sido encontrado uma minhoca num pão que tinha embalagem individual e que seria indício de falta de higiene da sua empresa. António Keating também o analisou e viu que "o pão estava imaculado, sem vestígios da minhoca ter entrado. Tinha sido lá colocada uma minhoca seca". Aqui sim, soube o fim da sua investigação. "Tanto quanto sei continua a ser fornecedor de pão do hospital".
"É um factor de frustração", este de não saber o fins das narrativas que apanha a meio. Um entomólogo intervém no processo mas nunca vai a tribunal, redige um relatório. É um trabalho que, ainda assim, lhe dá "gozo" mas no seu caso como no dos outros dois entomólogos que fazem este trabalho em Portugal "é um part time", mesmo sendo ele o mais experiente no país. Não há casos suficientes [chegam-lhe uns sete por ano], nem financiamento". "Se pudesse fazia disto full time. É o trabalho que me dá mais gozo".
Se houvesse uma base de dados dos insectos portugueses em cada ponto país seria possível ir mais longe nestas investigações: ao ponto de saber onde foram mortas as pessoas. "Se a pessoa morrer a Sul do Tejo é colonizado por uma fauna de insectos diferente do que se for a Sul do Mondego". Mas não existe.
Outras dos caminhos menos explorados da entomologia forense é a possibilidade de retirar DNA do sangue sugado pelas moscas. "Quer as larvas e as moscas retêm sangue das vítimas", um recurso que é importante quando o corpo não existe mas há outro tipo de vestígios de crime num determinado local.
São muito limpas
Este seu trabalho seria suficiente para explicar o "fascínio" que tem pelas moscas, mas há mais razões. "As moscas limpam o mundo. Bastam as moscas para limpar a carcaça de um elefante" e, quando são ainda larvas, o seu potencial higiénico é ainda maior: "A larva de mosca é muito limpa, está sempre a produzir antibióticos", tanto que é usada em tratamentos de feridas. Há manuais de sobrevivência de militares americanos onde se ensina como as larvas de mosca podem ser usadas para tratar ferimentos em situações de combate, enquanto não há acesso a antibióticos convencionais. "O objectivo é evitar a morte de tecidos. Só comem tecidos mortos e não vivos". Na Alemanha as larvas têm uso clínico, completa.
Mas não se fica por aí a sua utilidade, continua António Keating. Nas Astúrias (Espanha) as moscas fazem parte do processo de produção do queijo artesanal de Cabrales, que é curado em grutas. "São as larvas que dão sabor ao queijo. O queijo é 'curado' pelas moscas que são atraídas pela caseína [proteína presente no leite]". Há três ou quatro anos era feito assim por produtores tradicionais, recorda António Keating, mas não sabe se com os regulamentos sanitários da União Europeia isso mudou. "Para os apreciadores queijo Cabrales sem larvas não é verdadeiro queijo Cabrales".
Convencido da utilidade da mosca?
"Vocês, moscas vulgares/ Que não trabalham como as abelhas/ Nem brilham como as mariposas/ Vocês, velhas amigas/ evocam-me tanta coisa". a

cgomes@publico.pt

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