A palavra segundo São Pier Paolo

Uma peça imensamente poética, estranha, despojada. Um texto assombroso para um teatro muito singular, o Teatro da Palavra que Pasolini defendeu contra o teatro burguês. "Afabulação", pela Cornucópia, pertence a essa magia das palavras ditas pelo corpo.

Pasolini é peremptório: o teatro tradicional já não existe. O teatro novo aspira a uma finalidade paradoxal que é esta: o teatro deve ser o que o teatro não é. Além disso, os tempos de Brecht estão ultrapassados. Este testemunho do poeta, cineasta e dramaturgo italiano, autor de "Afabulação", que ontem se estreou na Cornucópia, em Lisboa, tem a ver com a fabricação teórica das suas seis tragédias escritas nos anos 60 e que ilustram o conceito do novo teatro de Pasolini, o Teatro da Palavra, que ele criou contra o teatro de entretenimento, o teatro burguês de contestação, o teatro oficial, académico ou de vanguarda e para o qual escreveu um manifesto no final dos anos 70. Como diz Luis Miguel Cintra, encenador e protagonista da peça, "um teatro que se quis escandalosamente da palavra. Austero. E palavroso. Sem medida. Um pequeno teatro enorme. Público, político, como o corpo terá de ser"."Afabulação" é um texto poético assombroso, que tem tanto de divino como de maldito, e é a revelação de uma luz, uma claridade que se situa entre a vida e a morte, numa espécie de enigma interior. Além de ser uma feliz evocação ao que de melhor existe no teatro clássico. Escrita num curto espaço de tempo, como todas as tragédias de Pasolini, em 1966, foi levada à cena pela primeira vez em 1977, no Teatro Tenda de Roma, encenada e protagonizada por Vittorio Gassman. Faz parte de uma série de seis tragédias, todas do anos 60, cujo propósito era criar "um teatro de palavra contra a decadência do teatro burguês".Que faremos perante um filho "anacronicamente inocente" que não nos quer matar? Perante o seu corpo? pergunta Luis Miguel Cintra a propósito do tema da peça."Afabulação" fala de um pai (Cintra), um industrial da Lombardia, que regredindo ao estado de criança, fascinado pelo filho (António Pedro Cerdeira), mas face à incompreensão da juventude dele e do seu futuro, o acaba por matar, embora o seu desejo fosse o ter sido morto por ele. É uma referência à tragédia de Sófocles, "Édipo", na qual é o filho que mata o pai."Afabulação" faz uma reflexão sobre as relações entre velhos e novos, entre a herança do passado e o futuro que nos escapa, a incompreensão desse futuro, a juventude, o novo, uma realidade que não é possível conhecer sem a destruir, sem se apoderar dela. É uma peça filosófica, escrita e feita por pessoas, representada por pessoas (Pasolini queria que o não fosse por meros actores, mas por corpos que entendessem o que ele desejava transmitir), uma peça sobre a perda do poder, sobre tudo o que significa horror ao poder e que por isso ganha uma grande dimensão política.Para Luis Miguel Cintra "este texto fala também do corpo escandalosamente sexuado. Este espectáculo gostava de ser, como texto, apenas isto: um discurso púdico, dolorosamente solitário, sobre o corpo, contra a grande solidão". O encenador disse ao PÚBLICO que o trabalho de encenação foi escasso, já que a peça é de um despojamento total, com o mínimo de adereços (uma cama, um cadeirão de repouso, uma mesa, um maple). "É um anti-espectáculo". O essencial foi criar um espaço mínimo onde os actores dissessem o texto (um quadrado de luz branca), que é o que conta neste teatro pasoliniano, e que eles entendessem o que estivessem a dizer. "Para isso, cada frase foi lida e analisada ao milímetro. Esse, sim, foi o nosso trabalho".Para além do tema, que o seduz, Cintra escolheu esta peça não só porque era, das seis tragédias de Pasolini, a menos complexa, a que se sentia mais apto a levar à cena, mas sobretudo por Pasolini, figura com um porte moral irrepreensível e uma vida exemplar, uma personalidade forte, genuina, combativa: "Para mim, Pasolini teve uma vida de santo e é um santo, um mártir com o sangue a escorrer, com uma vida política, voltada para os outro e para Deus, que nos defende do Mal, do cinismo. E nos deixam o desejo e ainda a vontade de conhecer. São Pier Paolo faz agora parte da minha colecção de santos".O teatro de Pasolini, a que ele chama o "Teatro da Palavra", é na sua opinião um fenómeno novo porque se dirige a um novo tipo de público, passando para sempre ao lado do público tradicional. No "Manifesto para um Novo Teatro" (1966), Pasolini explica que concebeu o "Teatro da Palavra" por oposição ao "Teatro da Conversação", na definição de Moravia, que constrói uma estrutura espectacular naturalista (um teatro de entretenimento) sem a qual os acontecimentos não seriam representados. "Teatro da Palavra", também, por oposição ao teatro do "Gesto e do Grito" que faz tábua rasa das estruturas naturalistas, dessacralizando os textos, mas mantendo a acção cénica (o objectivo é apenas chocar o público). Para Pasolini, a característica fundamental do seu "Teatro da Palavra" é a ausência de acção cénica, "o desaparecimento quase total da encenação", luzes, cenografia, guarda-roupa, restando apenas o indispensável - este teatro deve continuar a ser uma forma de "rito"-, ou seja, a iluminação e extinção das luzes que indicam o início e o fim da representação.Para Pasolini, o "Teatro de Conversação" (teatro tradicional, burguês, oficial ou académico) e o teatro do "Gesto e do Grito" (teatro de vanguarda, antiburguês, de contestação ou underground) são "produtos de uma mesma civilização burguesa, ambos têm em comum o ódio ao texto", o primeiro de um modo hipócrita, o segundo irracionalmente. Já o teatro que defende como o que é tido por antiburgês (o do "Gesto e do Grito") são produtos dos mesmos grupos culturais antiburgueses da burguesia, mas diferem num ponto: o teatro do "Gesto e do Grito" destina-se à burguesia "escandalizável" (sem a qual este teatro não seria concebível, como Hitler seria inconcebível sem judeus, polacos, homossexuais ou ciganos), o "Teatro da Palavra" destina-se aos mesmos "grupos culturais avançados" de que é produto.O Teatro da Palavra, diz Pasolini, representa "a única via do renascimento do teatro numa nação em que a burguesia é incapaz de produzir um teatro que não seja provinciano ou académico e em que a classe operária é absolutamente estranha ao problema". Ao ir mais longe do que qualquer outra possibilidade de relação com a burguesia, o Teatro da Palavra "é o único a poder atingir realmente, sem preconceitos nem retórica, a classe operária", porque está ligado por uma relação directa aos intelectuais "desses grupos culturais avançados".

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