A nova Costa já chegou

Percorremos a longuíssima passadeira de madeira até ao fim. E, de repente, estamos na fronteira. Para trás de nós fica o futuro; à nossa frente está o passado. Estamos na Costa de Caparica. E estamos exactamente entre dois mundos - um deles tem vindo a avançar sobre o outro, até se deter aqui, neste exacto ponto. Olhamos em frente. Troncos de madeira e carris meio enferrujados no meio da areia marcam o início do comboiozinho de praia, o mesmo desde o início dos anos 60, branco e azul, ou branco e vermelho, com as letras pintadas no tecto a avisar "Não se debruce/Don't lean over the side". Mais à frente velhas casinhas de madeira de cores vivas, construídas há muitas décadas sobre as dunas da praia, ainda resistem. Por detrás fica um dos três grandes parques de campismo da Costa, também eles condenados a sair dali quando o CostaPolis - o plano de recuperação e melhoramento de toda a frente de mar da Costa de Caparica - avançar para mais uma fase.
Aquilo que vemos à nossa frente é a Costa como sempre a conhecemos, uma praia que foi crescendo desordenadamente, em que cada um foi construindo a sua casinha e ficando à espera de ver o que acontecia, e em que a velha estrada de acesso às praias se torna um pesadelo nos fins-de-semana de Agosto - uma travessia do inferno para chegar ao paraíso.
Nas casas de madeira coloridas a vida decorre como sempre. Para já o Polis parou a meia dúzia de metros e ninguém parece muito convencido de que a partir dali avance rapidamente. "Não sabemos de nada, ninguém nos informou", diz um rapaz que atende os (poucos) clientes num dos bares de praia de madeira. "De ano para ano isto tem caído, sobretudo nos últimos cinco anos", lamenta-se. "Há pessoal que simplesmente deixou de vir para cá". O tempo não ajuda, com o vento que tem feito este ano. E não se sabe como vai ser quando os parques de campismo forem transferidos, como está previsto (embora o processo esteja parado por causa de uma proviência cautelar) para o Pinhal do Inglês, mais perto da Fonte da Telha.
Da casinha azul ao lado sai um casal que vem até ao bar comer hamburgueres. "Estas casas foram trazidas para aqui em barcos puxados por bois", conta o rapaz atrás do balcão. O vizinho da casa ao lado confirma. Não foi ele o primeiro proprietário da sua mas já a comprou há perto de 40 anos e habituou-se a passar férias ali em cima da praia. Não duvida que, mais cedo ou mais tarde, isso vai mudar. Está é convencido de que será mais tarde. "Há mais de dez ou quinze anos que se ouve falar das obras".
O facto é que nos últimos anos elas avançaram, e este Verão a Costa pôde anunciar que a fase das praias da frente urbana já está concluída - há um novo jardim urbano na zona Norte, com parques infantis, campos de ténis, um polidesportivo e um parque de merendas, e há uma nova frente de praia, com 800 lugares de estacionamento, e 22 apoios de praia, bares e restaurantes que se sucedem - monotonamente, é uma das críticas que se ouve - ao longo dos três quilómetros entre São João e a Nova Praia.
O futuro chegou, finalmente. Mas o que fica do passado? Para quem vem de Lisboa passar o dia deitado na areia e a mergulhar nas ondas, e que entra na Costa, vira à esquerda e faz a estrada directa até às praias do Sul, a ideia de que a Costa de Caparica tenha um passado ou uma história nem lhe passa pela cabeça. Mas não é assim para um homem como Joaquim Cavalinha, pescador, que é, ele próprio, uma das histórias da Costa.
"Fui para o mar com 12 anos, mas aos oito já comecei a enrolar corda", conta, encostado a um dos tractores nas novissimas casas de apoio construídas pelo Polis para os pescadores. Aos 84 anos lembra-se bem de como era quando ele, os pais e os três irmãos viviam "lá no Norte [da Costa], numa barraca de junco", e dormiam "deitados no chão, numa esteira, e quem se descuidasse acabava a dormir em cima do barro". Frio, é melhor nem falar nisso, e comida era quando havia. "Às vezes passava-se dois ou três dias em que nem se acendia o lume. Depois é que lá apareceu um homem a quem chamavam o Papo Seco e numa garagem antiga começou a fazer panelas de sopa. Eu comia o comer muito quente, num prato de folha fundo. Eram uns 50 ou 60 rapazes e raparigas que todos os dias iam à garagem comer". Abana a cabeça: "Um homem daquela qualidade nunca mais aparece".
Uma hora foi todo o tempo que Joaquim Cavalinha passou na escola. Não chegou sequer para comprovar se era verdade o que diziam da professora, "a quem chamavam a Beiçuda". "Diziam que era muito má, eu cá só lidei com ela uma hora, não sei se era boa ou ruim". Às dez da manhã o pai mandou chamá-lo. "Tinha apanhado um saco cheio daquela sardinha pequenina, uma fortuna naquele tempo. Nem o meu nome aprendi a fazer. O meu pai dizia logo para a gente 'se não vais para o mar nem as papas de milho comes'".
Ainda houve um padre que o veio buscar para o levar para o seminário. "Eu já tinha o saquinho na mão e o meu pai não me deixou ir. Cortou-me as pernas, se calhar. Eu lá aprendia alguma coisa e estava a comer todos os dias certo. Ele dizia que aquilo não era vida para mim". Encolhe os ombros com um ar desalentado. "E isto, é vida? Aos 84 anos devia estar sentado num maple e estou aqui a penar".
Penar é ter que esperar pelas seis e meia da tarde para poder ir para o mar, que antes não se pode por causa dos banhistas. É voltar às tantas da manhã para casa. É ver a mulher, Adelaide - "aquilo é uma mulher de aço, daquilo já não há" - aos 78 anos, a ir para a praça às seis da manhã vender peixe, depois para a lota das cinco às oito, para comprar, e depois novamente das dez da noite até à uma da madrugada.
O seminário e a escola primária ficaram para trás, esquecidos, e o Joaquim Cavalinha lá foi tirar a cédula marítima mesmo sem saber nadar. "Éramos quatro irmãos, todos pescadores. Para nadar não havia melhor que eles cá na Caparica, e eu não sei mexer um braço. Nunca me lembro de ir ao banho, por isso é que nunca aprendi a nadar". Mas a sorte protegeu-o. "Tinha 14 anos quando tirei a cédula, estava uma friagem que até metia medo. Eles perguntaram quem era o meu pai. 'O teu pai é o Cavalinha? Ó pá, vai-te vestir'. Ena, que sorte do mundo, ein? O meu pai era um pescador valente a nadar e eles pensavam que o filho era a mesma coisa".
Mesmo assim o mar nunca lhe meteu medo. "Se perguntar aí quem é o Cavalinha para o mar, eles que digam, sou o número um. O que eu digo a eles é: se um dia me acontecer uma fatalidade agarro-me a um com unhas e dentes e não o largo da mão. Há cinco ou seis anos, na Fonte da Telha, o barco foi mesmo ao fundo, e aquilo era fundo mesmo. Estava lá um, agarrei-me logo a ele, e ele 'larga-me da mão', e eu 'largo-te da mão para quê, não largo nada, ao menos estamos aqui os dois a conversar um com o outro'. Deixava-o da mão para ele ir para terra e eu ficar ali sozinho e morrer, não?".
Se o mar não muda e continua difícil, apesar de cheio de peixe - "às vezes apanhamos às 400 ou 500 caixas de cavala e não há uma fábrica que meta aquilo, tem que se abrir a rede e dar às gaivotas" - a vida à volta mudou. As instalações, estreadas há três meses, não têm comparação com o que havia antes. "Quem disser mal disto diz mal de Deus. A gente lá [nas antigas barracas de apoio à pesca] tinha que se arregaçar por causa da pulga, não se podia estar ali, era uma imundíce. Aqui tem o asseio, a luz. É tal e qual como a gente morar numa barraca e ir morar para um hotel".
O mal é que o peixe dá cada vez menos. "A semana passada cada homem ganhou dois contos, a semana inteirinha a trabalhar". O peixe não se vende. "É tudo à conta dos espanhóis, peixe de aviário, que não presta para nada. Os restaurantes preferem porque é mais barato, mas o maior crime que eles fazem na vida é preparar aquele peixe. Aquilo nem gosto tem".
Do outro lado da Costa, em direcção à Arriba - "daqui lá são dois minutos, mas veja lá se os percebe, olhe que eles têm um sotaque diferente", avisa Cavalinha - está um contemporâneo do pescador, mas de um outro mundo. Mário Bengala é um homem das Terras da Costa. Descendente das duas grandes "tribos" da zona: os pescadores vindos de Ílhavo e os vindos do Algarve, em tempos divididos por grandes rivalidades, com os primeiros a instalar-se a partir do final do século XVIII na parte Norte da Costa e os segundos, um pouco mais tarde, no Sul. Os de Ílhavo sabiam pescar mas também trabalhar a terra e foi esse o destino de Mário Bengala, que se tornou um dos maiores agricultores das chamadas Terras da Costa.
Quando o mar chegava
às Terras
"O meu avô Raimundo descendia de algarvios, e casou com a minha avó que descendia de ílhavos. Os ílhavos dedicavam-se à terra e ao mar, não tinham fome". Bengala está sentado numa cadeira de plástico, debaixo de um telheiro, no meio dos terrenos que continua a cultivar logo à entrada da Costa. A estrada que vem de Lisboa passa ali ao lado, e à nossa volta são campos de couves, abóbora, batata. "Isto eram tudo juncais. Há 82 anos o mar chegou aqui, até morreram vacas afogadas. Depois é que as Matas Nacionais fizeram a mata, para fazer as dunas, e a água salgada deixou de entrar aqui".
Mário Bengala está desesperado. Como os outros agricultores das Terras da Costa ouviu dizer que vai ser construída uma nova estrada de acesso à Fonte da Telha que vai atravessar as suas terras (um projecto que não faz parte do CostaPolis). "E as pessoas vão para a rua? Viver onde, com 42 contos? Passando aqui uma estrada o que é que fica para amanhar? Nada. Têm que fazer as contas com as pessoas, isto não pode ser assim". A voz altera-se-lhe, os olhos enchem-se de lágrimas. "Isto é a vida das pessoas, o meu avô nasceu aqui. Não roubem a gente, pela vossa saúde".
Foi o avô de Mário Bengala e os outros agricultores que transformaram os antigos juncais em terras férteis - usavam restos de peixe, caranguejos e até santolas para adubar a terra, e os vegetais começaram a crescer tanto que as Terras da Costa eram consideradas um dos celeiros de Lisboa. Depois, em burros, iam até ao mercado da capital vender. Como Joaquim Cavalinha teve esperança de ser levado para o seminário, Mário Bengala também sonhou em deixar a Costa e ir para a Marinha Mercante.
Mas os problemas sucederam-se. Primeiro foi o padre que, porque nunca o via na missa - "não há ninguém aqui do campo que tenha tempo para ir à missa" -, achou que ele era comunista e recusou-se a passar o papel que exigiam na Marinha confirmando era católico. "Apareceu o 25 de Abril, ele pensava que eu era comunista, e até veio beijar-me as mãos. E eu 'ó senhor prior, não me faça isso por amor de Deus', e ele 'ó Mário perdoe-me que lhe fiz tanto mal'".
Surgiram problemas familiares - uma complicada história que envolve uma discussão com o pai, um relógio partido e a promessa da mãe de lhe comprar um igual, mas de ouro, e ainda um dinheiro guardado com sacrifício pela mãe e escondido no forno de ferro, e que acabou queimado no dia em que Mário, sem saber de nada, resolveu assar umas batatas doces. Foi a vez de Mário prometer que trabalharia até poder dar à mãe o dinheiro para ela cumprir a sua promessa. Ainda hoje tem no pulso o relógio de ouro, testemunho desta história de promessas cumpridas. No meio de tudo isto acabou mesmo por ficar. E aos 13 anos pediu ao pai um bocado de terra para semear.
Agora não sabe o que vai ser o futuro. Sozinho, enorme, no meio das suas terras, o cabelo branco impecavelmente penteado, está desolado. "Tirava daqui toneladas de hortaliça, couves, nabos, cenouras, alfaces, alhos franceses. Depois levaram o Mercado Abastecedor para cascos de rolha. Marcaram os preços das couves no Natal a 25 cêntimos o quilo, e cada mulher que anda aí a trabalhar quer ganhar um conto de réis por hora. Não chega. Tenho ali batatas que não sei o que hei-de fazer com elas, aqui há tempos deitei mais de 50 caixas para um contentor. Estamos a afundar. Não há ninguém que queira trabalhar no campo. Dizem 'ah, é muito calor'. Depois da minha geração morrer não sei como isto vai ser".
António Neves, presidente da Junta de Freguesia da Costa da Caparica, compreende o desespero dos agricultores. "Esta gente pode não ser culta mas não é parva e sabe fazer contas. São pessoas inteligentes, sabem pensar e estão preocupadas como futuro. É inadmissivel que se entre por terras de cultivo dentro e se tirem medidas sem se explicar às pessoas o que está a acontecer. Criam-se situações explosivas sem necessidade".
Despedimo-nos de Mário Bengala deixando aquela figura imponente e solitária no meio das suas hortas e seguimos caminho. Um pouco mais à frente, não muito longe das terras de Bengala, nasceu nos últimos anos um bairro clandestino de cabo-verdeanos. Depois de o Bairro da Mata ter desaparecido - outra medida do Polis, que realojou noutras zonas os habitantes daquela que António Neves descreve como uma verdadeira "aldeia africana" - este bairro junto às hortas é hoje um dos graves problemas sociais da Costa.
Ao longe percebe-se que as condições de vida são miseráveis, barracas de madeira amontoam-se umas em cima das outras, crianças nuas tomam banho numa piscina improvisada, mulheres sentam-se em cadeiras de plástico no meio da terra. "Eram terrenos que deixaram de ser cultivados", explica o presidente da Junta. "Deixou-se construir uma barraca, depois outra, e a situação hoje é muito complicada. Era um problema que podia ter sido atalhado. Mas neste momento não vejo que haja condições para alojar aquela gente, até porque o Polis não prevê mais espaço de construção para realojamento".
Na altura em que passamos pelo bairro ainda não conhecemos Mônica Mesquita, a brasileira que no projecto D.a.r. à Costa (apoiado pela Junta e pelo programa Escolhas) tem trabalhado com a população que aqui vive. Vamos encontrá-la depois, nas instalações da associação, pequenina, cheia de energia, enrolando e desenrolando o cabelo loiro num rabo-de-cavalo enquanto conta, de um fôlego, todo o trabalho que ali fazem.
Rodeada pelas crianças que, cheias de areia e sal, acabam de chegar da praia, Mônica distribui beijos ao mesmo tempo fala das aulas de hip-hop e das de alfabetização dos adultos e que mostra as pulseiras feitas pelas meninas, e os trabalhos manuais feitos de material reciclado a partir das ideias fantásticas da "avó Manuela", figura fundamental do Dar à Costa, mas que nesse dia só vamos conhecer pelos quadrinhos na parede que mostram o "primeiro estabelecimento de banho Ivandro (1927)" ou o "segundo estabalecimento de banho Tarquínio (1934)".
António Neves está há 55 anos na Costa, para onde veio quando tinha seis meses, mas ainda se lembra desses estabelecimentos de antigamente. "Quando eramos pequenitos eram de restauração e nas caves os banhistas alugavam quarto. Tinham umas janelinhas e umas escadas exteriores para a zona do restaurante. Começaram a desaparecer no final dos anos 60, início dos anos 70". Mas deixaram descendência e foram os estabelecimentos que lhes sucederam que agora tiveram de se adaptar aos novos tempos e - os que o conseguem - passar para um dos novos apoios de praia, todos iguais, com as suas ripinhas de madeira clara e as suas esplanadas voltadas para o mar, cheias de confortáveis pufos coloridos.
Já não são muitos os que se recordam da velha Costa do início do século XX. Só homens como Joaquim Cavalinha ou Mário Bengala conseguem olhar para lá dos prédios feios que nas últimas décadas invadiram toda a zona para verem ainda a "Caparica doutros tempos" que Salvador Félix Martins descreve no livro do mesmo nome, ou que o pintor Mário Silva Neves, filho de pescadores da Costa, recorda em "Costa de Caparica no areal do tempo". Só eles são capazes de ver a velha Rua dos Pescadores quando esta era apenas meia dúzia de casas construídas em torno da Casa da Coroa (que, em 1800, terá sido a primeira casa de pedra e cal na Costa, e onde se diz que o rei D. João VI se alojou em 1824), que já desapareceu substituída por um mini-parque de estacionamento.
A utopia de Cassiano Branco
Só eles se lembram ainda das histórias contadas pelos avós sobre o grande incêndio que em 1884 destruiu quase todas as cabanas de colmo dos pescadores e sobre como Jaime Artur da Costa Pinto, na altura deputado por Almada, mandou construir um bairro com casas novas para os pescadores - de tal forma que a tragédia ficou conhecida como "fogo Costa Pinto". E das noites na taberna do Capote, a cantar o fado, do Casino Atlântico que em 1931 abriu na Rua dos Pescadores, e do sucesso que teve no Brasil Ercília Costa, fadista da Caparica a quem chamavam "santa".
E recordam o antigo largo do Papo Seco onde parava a velha camioneta vinda da Trafaria - foi em 1925, conta Félix Martins, que a Costa "deu um passo gigantesco, ao ser classificada de 'estância balnear, de repouso, cura e turismo'", e que passou a ser destino dos banhistas vindos de Lisboa. Cinco anos depois, o arquitecto Cassiano Branco desenhava para esta Costa de Caparica - que vivia ainda ao ritmo dos barcos que iam para o mar (e de tragédias como a nunca esquecida "viradela dos onze", onde morreram onze homens) e dos carros de burros carregados de couves a caminho dos mercados de Lisboa - um projecto de urbanização que a transformaria numa praia futurista.
O território de onde as miseráveis cabanas de colmo tinham desaparecido há pouco tempo transformava-se sob o traço de Cassiano Branco num ordenado conjunto de hotéis, casinos e piscinas, com um canal entre a terra e a praia para a prática de desportos náuticos, uma enorme escorrega e pequenos barcos à vela. Uma "proposta utópica", escrevem Manuel Fernandes de Sá e Francisco Barata Fernandes no livro "Cassiano Branco uma obra para o futuro", que "prefigura uma Cidade de Lazer, particularmente apetrechada com equipamentos desportivos, lúdicos e culturais, que também, seguramente, não são Portugal dos anos 30".
E não iriam ser, seguramente, a Costa de Caparica das muitas décadas que se seguiram. Na Costa as coisas foram simplesmente acontecendo. Os parques de campismo foram crescendo, tornando-se em muitos casos local de habitação permanente. Na estrada para as praias do Sul cada um construiu como lhe apeteceu e o caos urbanístico instalou-se.
O proprietário de algumas casas nessa zona, sentado à sombra de um guarda-sol, de calções de banho e boné na cabeça, pede para não ser identificado mas lança-se na conversa para explicar o seu cepticismo quanto ao futuro do Polis - que não lhe parece que tenham dinheiro para avançar para a próxima fase (realojamento dos moradores e demolição do Bairro do Jogo da Bola, junto ao parque de campismo de Almada), que não acredita que consigam mudar "milhares de campistas" para o Pinhal do Inglês, que a Fonte da Telha não tem capacidade para absorver essa gente toda.
Mas o cepticismo estende-se também ao estado da agricultura e ao futuro das Terras da Costa. "Está de rastos", garante, apontando para um caixote de batatas que tem atrás de si. "Um amigo meu até me pediu para vender aqui umas batatitas, porque não conseguem escoá-las de maneira nenhuma". O turismo não está muito melhor. "A Costa foi abandonada. Há muito menos gente. O ano de 1998 foi o último bom que tivemos".
As dúvidas, pelo menos no que diz respeito à velocidade de avanço do Polis, parecem justificadas. O CostaPolis aguarda agora a decisão judicial sobre a providência cautelar no processo de expropriação do Pinhal do Inglês, e diz não poder "estimar o tempo que vai demorar". Adianta, no entanto, que não existe outro espaço alternativo para os parques de campismo.
O presidente da Junta confirma as dificuldades: "Há uma falta de dinheiro que já foi assumida pela CostaPolis, e prevê-se agora que o plano se vá arrastar para lá de 2011, até 2013. O problema é que os sete planos de pormenor estão encadeados uns nos outros. Não se pode saltar por cima de um". Para se avançar para os parques de campismo é preciso resolver o Bairro do Jogo da Bola (onde os moradores resistem ao realojamento).
E, depois da região de Lisboa e Vale do Tejo ter deixado de ser considerada prioritária nos Quadros Comunitários de Apoio, as verbas disponíveis para o Polis viram-se reduzidas, o que colocou o programa "na situação de ter que gerar receitas para ir continuando a trabalhar". O que nem sempre é fácil. A venda de um terreno no centro da Costa para um hotel, por exemplo, que seria uma dessas fontes de financiamento, está a revelar-se mais difícil do que o previsto, sem interessados a aparecer. Apesar disso, sublinha António Neves, "um dos planos com custos mais pesados era o das praias urbanas e esse está concluído".
Voltemos então a essa frente de praias. Os novos bares e restaurantes estendem-se por ali fora - grande parte deles já em funcionamento (embora sem grande clientela ainda), alguns ainda fechados. "Os antigos já não tinham condições para funcionar", reconhece António Neves. Mas há quem ache que os 22 agora criados são em número excessivo. Correspondem ao mesmo número de equipamentos que existiam antes, explica o gabinete de comunicação do CostaPolis.
O problema, segundo o presidente da Junta, "é que havia equipamentos de tamanho diferente, desde o Eléctrico, que era pequeno, ao Carolina do Aires [que é, juntamente com o Barbas, um dos restaurantes históricos da Costa], e hoje têm todos o mesmo tamanho. Não há aumento de equipamentos, mas a área ocupada é maior".
Comboio em perigo
Todos lutam para se distinguir - se uns não precisam, como O Barbas, que com a cara do Barbas em desenho na fachada e os cartazes do Benfica é inconfundível, outros tentam diferenciar-se pelo conforto (uma cama com dossel e cortinas na esplanada) ou pela cozinha (marroquina, por exemplo). Os espaços serão monótonos (o projecto é do consórcio Santa Rita Arquitectos/W.S.Atkins, mas os apoios de praia têm que corresponder às regras estabelecidas pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira Sintra-Sado), mas são limpos, agradáveis e confortáveis.
À frente, no areal, máquinas com longos tubos, descarregam mais areia para as praias - "é como pôr acúçar no café", comenta o dono de um bar de praia, "amanhã desaparece tudo outra vez". Lá ao fundo aparece o comboiozinho. "Isto existe há 48 anos", conta o senhor Pereira, um dos maquinistas. "Mas nos últimos dois anos perdeu talvez 60 por cento da clientela. Fizeram as obras e mandaram-nos para aqui, ninguém sabe que estamos aqui. Assim a tendência é para acabar. Já se falava que este ano não ia abrir". O comboio vai-se enchendo lentamente, mas nada do que era antes, garante Pereira. "Nesta altura do ano, quando partíamos lá de baixo [do centro da Costa] eram as três carruagens cheias, agora temos duas e andam praticamente vazias".
Nos planos da CostaPolis está previsto que o comboio sobreviva e que surja um interface de transportes (no futuro deverá chegar aí também o Metro Sul do Tejo) precisamente no local onde está agora a estação do comboio. "O núcleo urbano vai passar lá para baixo, e a zona mais antiga da Costa vai passar a ser mesmo antiga", diz António Neves. "O mercado vai lá para baixo [perto do local onde começa agora a linha do comboio], a rede de transportes vai ter os seus terminais aí, a Junta também vai mudar para aí, e isso vai arrastar o centro nevrálgico da Costa mais para Sul".
Estamos novamente na "fronteira". Olhamos para a direita e vemos toda a extensão dos novos bares, a Costa incaracterística mas finalmente ordenada, 80 anos depois do utópico plano de Cassiano Branco. Olhamos para a esquerda e vemos o comboio e os desanimados maquinistas que não sabem qual vai ser o futuro daquele que foi sempre um dos emblemas da Costa.
O fim da tarde está a chegar. A esta hora, no velho Bairro dos Pescadores - onde a rua 15 ainda mantém os enfeites das festas de São João e os poemas de amor à Costa escritos no chão (Ó Costa da Caparica/terra onde eu nasci/serás sempre por mim amada/primeira praia que eu vi) - a peixeira Adelaide está a sair de casa para ir guardar lugar na nova lota e comprar o peixe que há-de vender no dia seguinte. O marido, Joaquim Cavalinha, prepara-se para sair para o mar, contrariado por só o deixarem ir tão tarde e sabendo que a estas horas já ninguém apanha lulas. Mónica estará a pensar no almoço do dia seguinte para os meninos do D.a.r. à Costa - peixe, oferecido pelos pescadores, e que ela e as outras ajudantes amanham ali mesmo em frente da associação. E Mário Bengala há-de estar a voltar para casa, deixando para trás as couves que terá de vender tão barato que quase não vale a pena.
A nova Costa já chegou. Mas a velha Costa, a do mar e das Terras, das histórias de ílhavos e algarvios em rixas na Rua dos Pescadores, das memórias das sopas do Papo Seco e da voz da fadista Ercília, a Costa que tem medo que o peixe já não se venda e que os legumes já não rendam, a dos cabo-verdeanos que esperam trocar a sua barraca miserável por uma casa, e da brasileira que os quer ensinar a ler, essa Costa continua a existir - mesmo que a caminho da praia a gente nunca repare nela. a

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