Os três pecados da série Rabo de Peixe

São pequenos “pecados”, ou talvez grandes, que aponto com bondade a uma série portuguesa - mesmo tendo gostado muito de a ver e estando-lhe muito grato pela oportunidade que nos deu de reflectir.

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Será que já foi dito tudo sobre a série que colocou um pedaço de Portugal nos olhos do mundo através da Netflix? Certamente que não. Mas depois de ter visto a série toda com muita atenção, há algumas coisas que gostava de dizer sobre o que a série não diz, não mostra ou não explica. E estou apreensivo como não me recordo de estar, sobre a forma como gostaria de tocar num dos pontos, sem ser ofensivo, correndo o risco de ter o efeito paradoxalmente inverso ao que eu quero atingir, e mantendo-me fiel ao nome que dei a esta crónica semanal: “O que significa ser, humano?”, onde a vírgula marca a intenção e a atenção dos meus escritos.

Não tenho qualquer pretensão nem habilitações para ser crítico de séries televisivas. A série tem excelentes actores, com actuações excelentes e fico muito feliz pelo sucesso que está a ter, principalmente além-fronteiras. Os meus sinceros parabéns a todos os envolvidos.

Acho que posso dizer que já fui actor por um dia, num famoso anúncio de televisão. Fi-lo para oferecer esse dinheiro à minha equipa dos cuidados intensivos, para que pudessem fazer uma festa ou uma jantarada, pelo espancamento físico e emocional que sofremos durante a pandemia. Voltaria a fazê-lo por esse motivo, mas não gostei. Não sei quantos takes tive que fazer, com dezenas de pessoas à minha volta a fingir que sou médico, quando é tão mais bonito sê-lo de verdade. Não. Não me imagino neste mundo. Mas há algo que me fascina que é o guionismo, o storytelling, o pensamento e a escrita que está por detrás de tudo.

Quando eu vejo uma série ou um filme, o que me domina é a sensação de que o guionista está a falar comigo. E ao ver a série Rabo de Peixe senti isso mais do que nunca, por serem portugueses a contar uma história centrada numa terra que me desperta enorme paixão.

Eu sou loucamente apaixonado por estas ilhas no meio do Atlântico, e numas das vezes que lá estive, escrevi um poema a que dei o nome Açores, uma bomba de sabores e que acaba assim:

“…
Mas as mais fortes sensações,
Não vêm da explosão dos vulcões.
Não está logo à vista, mas é o mais surpreendente,
É o que vem da Alma e Coração, da sua boa Gente.”

O que me leva a ter coragem de mostrar a minha poesia tão pobrezinha é o querer que se entenda o quanto e o tanto que eu conversei com o guionista desta série, enquanto a via. E esbarrei em três indignações durante a série, do que ficou por dizer e por mostrar.

1. O sotaque. Sendo eu do Porto, não imaginam o que a gente do Porto se ri quando alguém de Lisboa nos diz que não têm sotaque. Não existe tal coisa como a ausência de sotaque. E os sotaques são das coisas mais bonitas e que mais identificam as terras, as culturas e as suas pessoas. Tirando o Pêpê Rapazote que volta e meia dizia “um rapazim” o distinto e maravilhoso sotaque micaelense foi substituído pelo sotaque lisboeta. E eu, como amante dos sotaques, seja em que língua for, fiquei triste por este pequeno "pecado".

Foto
Lagoa das Sete Cidades, São Miguel, Açores Anna Costa

2. A beleza. Eu tenho um carinho especial pelo grupo central (não conheço o ocidental, ainda) e seria no Pico que eu compraria uma casa se fosse muito rico, mas São Miguel tem das maiores pérolas de beleza natural que eu já vi na vida. Já vi muita coisa bonita do mundo, como as cataratas Victoria, Matchu Pitchu, Torres del Paine, o Salar de Uyuni, o Kilimanjaro, o Perito Moreno, o Sara, a Amazónia, entre outras belezas que tive a sorte de fotografar com as memórias. E, São Miguel não deve nada a ninguém em termos de beleza natural.

Como é que se passa toda a série sem se ver a Lagoa das Sete Cidades cuja beleza quase me fez acreditar em Deus, ou mesmo a Lagoa do Fogo ou a das Furnas? São Miguel é tão, mas tão bonito que me pareceu um pequeno “pecado” uma produção deste gabarito não mostrar algumas das suas jóias da natureza.

3. A pobreza. Esta foi a razão que me levou a escrever este texto, e também a razão do medo de abordar este tema pela sua complexidade. A pobreza de Rabo de Peixe é mencionada inúmeras vezes na série, mas não é bem explicada. Correndo o risco de ser mais um continental a falar do pouco que sabe sobre os Açores, Rabo de Peixe não é “apenas” pobre, é diferente. Não há nenhuma separação geográfica que o explique, mas Rabo de Peixe tem uma identidade muito peculiar, que é estranhamente diferente das outras freguesias a escassos quilómetros a leste ou a oeste.

Eu sou atraído por fenómenos sociológicos que me despertam emoções fortes. Quando nos aproximamos de Rabo de Peixe, sentimos o atravessar de uma fronteira invisível. Tem uma cultura própria, é uma questão identitária que me leva a sentir semelhanças com a etnia cigana, sem o ser. Há um orgulho por vezes nobre, por vezes pérfido na forma como absorvemos a declaração “eu sou de Rabo de Peixe”.

Estive horas sozinho, em dois dias diferentes nesta vila a ouvir em loop a música de Sandro G Eu não vou chorar, que marcou a minha juventude e que tanto diz sobre os seus conterrâneos. Os problemas com o álcool, as drogas, o abandono escolar, e até mesmo a consanguinidade, são especiais no mau sentido da palavra.

Foto

Abordei esta questão com muitos micaelenses inclusive alguns que se dedicavam a organizações e programas de educação em Rabo de Peixe, e até hoje tenho mais perguntas do que respostas. Mas se não percebermos os problemas nunca os conseguiremos resolver. E por isso eu escrevo, porque sou fiel às emoções e à vontade de lutar para que esta terra e a sua gente deixem de ser conhecidos pelo clichê, talvez falso, da "freguesia mais pobre da Europa”.

É sabido que a aproximação do Chega ao PSD nos Açores mudou a política nacional, talvez para sempre. E o crescimento do Chega nos Açores deve-se em boa medida às críticas nefastas dos beneficiários do RSI, muito tipificadas por esta marginalização de Rabo de Peixe. Preocupo-me com esta pobreza que tem contornos muito “especiais”, e senti como um “pecado” que esta série dedicada a esta terra e à sua gente, não tenha abordado este ângulo da compreensão de uma pobreza diferente.

São apenas pequenos "pecados", ou talvez grandes, que eu aponto com bondade a uma série portuguesa, mesmo tendo gostado muito de a ter visto, e estou-lhes muito grato pela oportunidade que nos deram de reflectir sobre estes assuntos; o encanto dos sotaques, a beleza dos Açores, e a obrigação de todos nós de lutarmos contra a pobreza. Foi com bondade que conversei com o guionista Augusto Fraga.

Ou como diz Eduardo, a personagem principal, num momento crítico do último episódio: “Isto não é bondade, é justiça”.

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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