Rosinha e os bichos do IndieLisboa

Por vezes na crítica ao colonialismo (neste filme, como em várias exposições sobre fotografia colonial) há a crença de que expondo sem pudor a violência se consegue suscitar uma desconstrução crítica.

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O título do filme — Rosinha e Outros Bichos do Mato — não era um bom presságio. Dava para adivinhar, pela audácia de um título sarcástico que classifica como “bichos do mato” as pessoas negras exibidas no “zoo humano” da Exposição Colonial do Porto (1934), que não ia correr muito bem. Mas, ainda assim, fui à sua estreia no Festival IndieLisboa. Através de um trabalho extenso e detalhado sobre o arquivo colonial, o filme propõe-se contribuir para o rompimento da ideia lusotropicalista, profundamente arreigada na sociedade portuguesa e manipulada pela extrema-direita, de que “Portugal não é um país racista”. Ao mesmo tempo que no filme se vão exibindo inúmeras fotografias de pessoas negras, sobretudo de Rosinha, na dita aldeia indígena da Exposição Colonial do Porto , duas vozes femininas, brancas, vão narrando os aspetos críticos da violência que aquelas imagens retratam e exercem. Esperem aí, volta atrás, vejamos com mais detalhe.

No palco, antes da projeção do filme, a realizadora deixa-nos saber que a atriz negra que encarna Rosinha — a quem diz tanto dever o filme — não o havia ainda visto. Então, mas um filme como este não foi minimamente discutido com a protagonista, uma das poucas intervenientes negras, antes da estreia? Aliás, como pode, em 2023, com tudo o que se tem debatido sobre representatividade e lugar de fala, ter dispensado integrar na sua direção pessoas racializadas com reflexão sobre estas coisas? Talvez por isso o filme, que pretende ser uma crítica à imagem colonial, exponha repetidamente durante quase duas horas fotografias e vídeos de Rosinha e de outras mulheres negras desnudas, numa saturação incompreensível, sem cuidado em tapar-lhes o corpo, em garantir o seu anonimato, passando por cima dos direitos de imagem dessas pessoas, parte delas vivas ou com descendentes vivos. Recordei-me das palavras do África, jornal negro de Lisboa que, a propósito da Exposição Industrial de Lisboa (1932), criticava a curiosidade “impertinente”, “doentia e bárbara dos mirones” lisboetas, que “olham tudo, tudo vasculham e espreitam”. A câmara debruça-se sobre os olhos e seios de Rosinha e de outras mulheres, faz close up, incapaz de resistir, por cobro, ao voyeurismo colonial e patriarcal.

Por vezes na crítica ao colonialismo (neste filme, como em várias exposições sobre fotografia colonial dos últimos anos), há a crença de que expondo sem pudor a violência se consegue suscitar da parte de quem vê uma desconstrução crítica daquela violência. O problema é que na nossa cultura visual estão normalizadas as imagens de corpos negros violentados. Não é um debate novo e surpreendeu-me que um filme como este não se tome a si mesmo como objeto de reflexão, não se questione sobre o que significa não ter qualquer referência a Rosinha fora do frame colonial ou não abordar a resistência das pessoas negras. O filme só consegue olhar as pessoas expostas na “aldeia indígena” enquanto imagens, categorias construídas pelo Estado Novo, não como pessoas. Talvez por isso não tenham hesitado em usar atrizes e atores negros, contemporâneos, vivos, para reencenarem os gestos e poses da “aldeia indígena” e reviverem as cenas de sujeição experienciadas pelos seus antepassados.

A dada altura, o filme propõe uma equivalência entre os tipos etnográficos do Estado Novo a que foram sujeitas as mulheres brancas pobres em Portugal e as mulheres negras nas colónias. Mas, então, a intersecção entre género e raça afinal não conta? Rosinha será ainda vestida de “minhota”, numa alusão à política de “assimilação”, um dos pilares do discurso colonial. Só que essa política foi sempre mais declarativa do que efetiva, mais “seletiva” do que uma política generalista e o número de “assimilados” — categoria legal preconizada pelo Estatuto do Indigenato — era residual. O Estado Novo não queria Rosinhas vestidas de “minhotas”, podia até, em determinado momento ou contexto, dizer que queria, mas o que queria realmente era as ditas “indígenas” a quem legitimamente se podia impor o trabalho e o sexo forçado. E essa é uma diferença importante, face às funções da categorização etnográfica imposta às mulheres portuguesas.

Saí profundamente incomodada da sala. Daí a uns dias, o filme ganha o Prémio Árvore da Vida, do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), pelas mãos de Pedro Mexia e Rui Martins, membro daquela instituição religiosa. Pergunto-me: o que terão sentido outras pessoas negras, sobretudo mulheres, quando viram o filme?

P.S. Agradeço à equipa de realização do filme pelo convite para a estreia e pela resposta positiva ao pedido que mais tarde lhes fiz para ter acesso ao filme, exatamente para escrever esta crónica.

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