Poluição do ar: “Como é que tenho cancro do pulmão, se nunca fumei?”

Estudo na Nature sugere que a “culpa” pode estar na poluição do ar, mais precisamente nos processos que promovem inflamação e crescimento do tumor induzidos pela exposição às partículas finas.

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A poluição do ar por partículas finas – presentes no fumo de escape dos automóveis e nos gases dos combustíveis fósseis – pode "acordar" mutações preexistentes GettyImages

Há muitos anos, Charles Swanton, médico e investigador britânico, ouve a mesma questão de pacientes no consultório: “Como é que tenho cancro de pulmão, se nunca fumei?” Um estudo publicado esta quarta-feira na revista científica Nature procura responder melhor a esta pergunta que, durante muito tempo, constituiu um certo “enigma” para os cientistas.

A poluição do ar por partículas finas – presentes no fumo de escape dos automóveis e nos gases dos combustíveis fósseis – pode desencadear a proliferação de mutações preexistentes em células pulmonares, o que leva ao aumento da progressão do tumor, sugere o artigo do qual Charles Swanton é co-autor. Assim, não-fumadores que vivem em áreas muito poluídas têm maior probabilidade de desenvolver cancros de pulmão do que aqueles que habitam zonas com baixa poluição atmosférica.

“A descoberta de que o cancro de pulmão está associado à poluição do ar não é nova. O que é novo aqui é o mecanismo [biológico] subjacente que, acredito, prova uma relação de causalidade [entre as duas coisas]”, afirmou Charles Swanton, durante uma conferência de imprensa virtual. O oncologista lidera um grupo de investigação no Instituto Francis Crick, em Londres, e é director clínico do Cancer Research UK, no Reino Unido.

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O oncologista Charles Swanton é co-autor do estudo da Nature DR/EUROPEAN SOCIETY FOR MEDICAL ONCOLOGY

O estudo da Nature investiga como parte da poluição atmosférica – mais precisamente, as partículas finas com tamanho igual ou menor a 2,5 micrómetros (PM2,5) – interage com as células pulmonares, provocando mudanças biológicas que podem dar origem a tumores malignos. Os investigadores concentraram-se nas mutações dos genes EGFR ou KRAS, dois dos mais comuns em adenocarcinomas pulmonares.

A equipa de cientistas debruçou-se sobre a relação entre a exposição às PM2,5 e a frequência de cancro de pulmão em quase 33 mil pacientes com cancro de pulmão mutante EGFR de quatro países (Canadá, Coreia do Sul, Inglaterra e Taiwan). O estudo sugere que a exposição a níveis mais altos de PM2,5 está associada a uma incidência crescente estimada de cancro de pulmão no qual há mutação do gene EGFR. Ainda assim, é importante frisar que o risco de cancro pulmonar associado à poluição atmosférica é muito menor do que o risco ligado ao tabagismo.

Assinaturas moleculares distintas

“Para determinar como a poluição atmosférica causa cancro, os autores [Charles Swanton e colegas] analisaram as sequências de ADN de tumores de não-fumadores oriundos de áreas poluídas, e reportam que as amostras apresentam poucas alterações genéticas chamadas mutações pontuais, que são aquelas capazes de activar genes conhecidos por estimular o crescimento de cancros”, refere o cientista Allan Balmain, pioneiro nesta área da biologia dos tumores, num comentário publicado na mesma edição da Nature.

As mutações encontradas nos tecidos tumorais analisados parecem resultar de processos naturais (ou seja, “erros” genéticos que podem ocorrer durante a divisão celular) – ao contrário do que se vê no ADN de tumores de fumadores, nos quais as alterações genéticas são induzidas por elementos do fumo do tabaco. Por outras palavras, as mutações identificadas em amostras de não-fumadores têm uma “assinatura” molecular distinta daquelas oriundas de pessoas que fumam.

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Gabriela Gómez

As mutações nos genes EGFR e KRAS estão muitas vezes presentes no tecido pulmonar saudável. Resultam muito provavelmente de processos naturais de envelhecimento, nos quais a divisão celular pode dar origem a “falhas” no momento de replicar o ADN. Estas alterações genéticas estão “adormecidas” e só se tornam um problema de saúde quando são “acordadas” mediante a exposição a ambientes com muita poluição atmosférica.

“Ao que parece, células com inúmeras mutações podem ficar dormentes no tecido saudável sem causar qualquer tipo de problema, até serem ‘acordadas’ por um processo que converte estas células em tumores numa fase de inicial de crescimento”, escreve Allan Balmain no artigo.

Estas conclusões já haviam sido divulgadas no mais recente congresso da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (ESMO), que decorreu em Setembro de 2022 em Paris. Agora, os autores publicam os resultados completos, “acrescidos de novos dados”, num artigo publicado na prestigiada revista científica Nature.

Despertar mutações adormecidas

Os autores relatam que a exposição a níveis crescentes de PM2,5 está associada a uma incidência crescente estimada de cancro de pulmão com mutação do gene EGFR. Esta associação é validada, no mesmo artigo, por dados de mais de 407 mil indivíduos que integram o biobanco britânico, que consiste num repositório de amostras de tecidos humanos, e ainda por observações de uma coorte de 228 indivíduos com cancro de pulmão no Canadá. A equipa recorreu ainda a modelos animais (ratinhos) para investigar os processos celulares que podem estar por trás da progressão do cancro de pulmão desencadeado pela exposição às PM2,5.

Os autores reúnem estes resultados no estudo da Nature para defender a ideia de que as PM2,5 podem actuar como um promotor tumoral, um agente capaz de “despertar” mutações cancerígenas existentes. A equipa espera que este novo entendimento da biologia dos tumores abra caminhos não só para abordagens terapêuticas preventivas, mas também para políticas públicas que melhorem a qualidade do ar.

“Somos um laboratório dedicado à genómica, crescemos a medir mutações no ADN, sempre partimos do pressuposto de que as alterações genéticas estavam na origem e no progresso dos cancros. O que estes resultados nos mostram é que há aqui uma componente extremamente importante ligada ao processo inflamatório que estávamos a negligenciar. Eu considerei que estas mutações [naturais] não eram suficientes para desencadear o cancro”, explicou Charles Swanton, em resposta ao PÚBLICO na conferência de imprensa virtual.

Quando pensamos em cancros, é comum imaginarmos agentes carcinogénicos – como o fumo do tabaco – a causar tumores através de danos directos causados ao ADN. Neste caso específico de adenocarcinoma pulmonar, a poluição do ar funciona como um promotor do cancro, um agente que vem “acordar” uma mudança que já existia. E esta nova perspectiva foi, segundo o oncologista britânico, o que mais surpreendeu a equipa durante a investigação.

“Allan Balmain e outros autores já apontavam para esta verdade inconveniente”, diz Charles Swanton. “O nosso modelo não estava correcto para certos tipos de cancro que se formam de um modo complexo, requerendo, ao mesmo tempo, mutações e um agente promotor para se desenvolver”, remata o oncologista britânico.

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