Liberdade de expressão é uma coisa, caluniar e ofender à vontadinha é outra

O ser humano sente-se poderoso sendo violento, expressando ódio. E isso pega-se.

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"Sei que é permitido escrever o que se quiser nas redes sociais" Pixabay/Pexels

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"Os factos não existem, apenas interpretações", proferiu ou escreveu Friedrich Nietzsche a dada altura da sua vida – proferiu ou escreveu? Terá feito ambas as coisas? Qual será a verdade?

Para o filósofo alemão, os seres humanos obedecem às suas próprias interpretações da realidade. No livro Think Straight, Darius Foroux debruça-se sobre o ponto de vista de Nietzsche: "Não há forma de confirmar objetivamente a realidade. Isso não significa que nada seja real e que nós estejamos todos a viver num grande sonho. Só temos de perceber que os factos não são a mesma coisa que verdade. Esse simples pensamento poupa-lhe muita energia porque significa que ninguém pode estar certo ou errado. Não se preocupe em convencer pessoas com opiniões diferentes da verdade. Não é uma coisa prática. Poupe a sua energia para outras coisas mais úteis."

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Éder acusa Susana Torres de o ter utilizado para se autopromover. Susana Torres acusa Éder de ser mal-agradecido. (Houve mais acusações de parte a parte, mas estas chegam para resumir o tom de novela.)

Miguel Oliveira foi abalroado por Marc Marquéz no Grande Prémio de Portugal. Marc pediu desculpa a Miguel, afirmando que não o tentou ultrapassar e que a colisão se deveu a um problema nos travões. Miguel aceitou as desculpas, mas considerou a manobra de Marc "demasiado ambiciosa", acrescentando que "quando se tem problemas de travões, trava-se antes, não depois, e não tentamos ultrapassar".

Num e noutro caso — Éder e Susana; Miguel e Marc — a verdade de uns não é a verdade de outros. Só os visados saberão as verdadeiras intenções dos seus atos, bem como as justificações para as suas conjeturas.

Não conheço pessoalmente o Éder, a Susana Torres, o Miguel Oliveira ou o Marc Marquéz e muito menos sei o que pensam, pelo que não vou pressupor coisa nenhuma.

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Interessa-me, isso sim, chamar a atenção para o que estas duas situações suscitaram nas caixas de comentários de jornais online, sites de media e redes sociais: ódio, xenofobia, racismo, calúnia, denegrimento profissional e por aí fora.

Exemplos:

"Se não fosse ela, esse preto nunca tinha ido à seleção."

"Essa gaja há anos que anda a vender a banha da cobra."

"Espanhol bom é espanhol morto."

"Esse Miguel é um mimado, Moto GP é para homens."

Confesso que não fiquei surpreendido. Aliás, fui ler as caixas de comentários exatamente com a intenção de escrever este texto. Porque sei que é permitido escrever o que se quiser nas redes sociais e também nalguns sites de media e jornais online. O princípio da liberdade de expressão serve para todos. E filtro? Acaso terão os responsáveis pela gestão dos comentários nos sites de media e jornais (nas redes sociais, já ninguém tem dúvidas de que vigora a máxima "quanto mais descabido e ofensivo melhor") reparado que hoje em dia qualquer criança pode aceder sem dificuldade a algumas das redes sociais, sites de media e jornais online?

Um dos comentários mais graves que li — "espanhol bom é espanhol morto" — foi escrito na página de um canal de televisão numa rede social por um miúdo de 12 anos (tem a data de nascimento no perfil) a quem, segundo sei, nem é permitido, por conta da idade, ter página na dita rede social. Sim, li o comentário e fui espreitar o perfil. "Espanhol bom é espanhol morto", lia-se junto à foto de Marc Marquéz tombado no chão.

Permitam-me o pressuposto: a ter sido a criança a escrevê-lo (espreitei algumas publicações do dito e atestei que tem uma participação ativa na tal rede social, sobretudo com imagens de jogos), provavelmente ouviu a expressão "espanhol bom é espanhol morto" da boca de um adulto ou leu-a algures e copiou. Isto sou eu a tentar pensar pela cabeça de um miúdo de 12 anos e a achar que não terá sido um pensamento da sua autoria.

Mas a verdade é que já tive 12 anos há muito tempo e que o mundo mudou muito entretanto. Chamem-me ingénuo à vontade, mas ainda prefiro achar que um pensamento como este é da responsabilidade dos adultos que o rodeiam ou dos que escrevem comentários do género em redes sociais, sites de media e jornais online.

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O dizer mal gratuitamente e ofender sem a mínima noção das consequências a coberto dos ecrãs dos telemóveis, computadores e assento parlamentar é uma pandemia para a qual não existe vacina.

O ser humano sente-se poderoso sendo violento, expressando ódio. E isso pega-se. E só é possível pensar num controlo desta doença (para a cura já perdi a esperança) se se parar de alimentar e promover esta permissividade nos comentários (justificando-a com a liberdade de expressão) com que alguns se comprazem em prol de page views, protegendo assim crianças e jovens de se inspirarem em discursos de ódio e violência.

"Eu já não leio as notícias, gosto é dos comentários." Nos últimos tempos, li vários comentários deste género nas caixas de comentários de alguns jornais. Não é isto preocupante?

O bem e o mal que há no mundo é fruto do que fazemos. Identificar as causas do bem e do mal e compreendê-las é a chave para repetirmos ou sermos coniventes com determinadas ações. Todos somos responsáveis.

Argumentar é uma coisa, desconversar é outra.

Liberdade de expressão é uma coisa, caluniar e ofender à vontadinha é outra.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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