O clichê torna-nos robôs

O clichê, em si, é um comportamento robotizado. O clichê é o que nos torna robôs, é uma programação para dizermos as coisas sempre da mesma forma, infinitamente repetida.

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Tatiana Syrikova/pexels

Comecei a conversar com o ChatGTP, meio fascinada, meio assustada, como a maior parte de nós. Este chat de inteligência artificial tem feito soar os alarmes de muitas pessoas e indústrias, e tem sido anunciado como o potencial assassino das profissões criativas.

Nas minhas trocas de mensagens com o chat, nas quais pedi que ele produzisse textos, crónicas, cartas de amor e poemas, apesar de ficar surpreendida, senti-me, sobretudo, sossegada. À medida que ele me falava da “alegria contagiante”, da “brisa leve da manhã” ou da “Primavera da vida” eu percebi que este instrumento, no estágio em que se encontra, é um produtor de clichês.

Estando, por natureza, o clichê nos antípodas da originalidade e da criatividade, fiquei mais descansada. O lugar-comum é o lugar de onde qualquer criativo quer fugir. É um trabalho difícil, o mundo é uma sequência de lugares-comuns e de frases feitas nas quais todos tropeçamos. Mesmo quem se esforça por fugir deles, acaba por lá ir parar. É preciso um esforço tremendo para que não se diga “esforço tremendo”. O esforço não tem sempre de ser tremendo. Assim como a dor não tem de ser lancinante, nem a maioria esmagadora, nem o acordo tácito.

O clichê, em si, é um comportamento robotizado. O clichê é o que nos torna robôs, é uma programação para dizermos as coisas sempre da mesma forma, infinitamente repetida. É uma programação inconsciente que quase nos faz acreditar que não há alternativas para se dizer ou fazer as coisas, como se fossemos máquinas a seguir um código que alguém já digitou por nós. Em vez de pensarmos nos perigos do ChatGTP se tornar mais humano, devíamos pensar nos perigos de nós ficarmos cada vez mais como ChatGTP: um armazém de frases feitas prontas a ser disparadas.

Quanto mais me debruço sobre este assunto, mais percebo que não é necessário debruçar-me sempre sobre os assuntos. Posso apenas pensar sobre eles.

Muitas vezes, sem nos apercebermos, estamos a escrever ou a dizer duas palavras juntas, a usar as mesmas metáforas, como se fosse a única forma de se transmitir determinada ideia. Para evitar o lugar-comum é preciso um exercício muito humano, o de nos questionarmos em vez de repetirmos, e o de pensarmos em vez de reproduzirmos. Antes de seguirmos mecanicamente uma mesma fórmula, devíamos perguntar-nos: Será que teremos sempre de abraçar uma causa? Não estarão as mágoas já fartas de ser afogadas? As considerações precisam mesmo de ser tecidas? As homenagens têm de ser singelas?

Ao pensar no leque de opções que tenho, não consigo deixar de me perguntar: por que raio é que eu tenho um leque de opções? O que é um leque de opções, e porque é que reproduzo isto sem pensar minimamente no que significa? Terão as opções sempre de vir em leque?

Terá a coincidência de ser sempre mera? E a importância vital? Teremos mesmo de sentir um turbilhão de sentimentos? O crime terá necessariamente de ser hediondo? A recepção tem mesmo de ser calorosa, a desculpa esfarrapada, e a perda irreparável? Será que é preciso continuarmos a esboçar sorrisos, ou, pior, a vermos sorrisos aflorar?

O clichê é em si uma inteligência artificial, um programa que criaram e que cumprimos sem questionarmos. Metáforas que talvez um dia tenham sido originais, mas que agora são apenas repetições sem sentido. Estão por todo o lado, e cabe-nos a nós fugir delas. E evitar o pingo de respeito, os olhos marejados, o semblante carregado, o silêncio sepulcral.

A forma de vencermos o ChatGTP é fugir ao clichê. A forma de não nos tornarmos robôs é escaparmos ao lugar-comum das facilidades de linguagem, encontrarmos o lugar único que nos pertence e cravarmos lá a nossa bandeira.

Para continuarmos humanos temos de cometer o crime hediondo de acabar com a alegria contagiante, com a brisa leve da manhã e com a água cristalina. Não podemos ter um pingo de respeito, e precisamos de impedir que qualquer sorriso seja esboçado.

Temos de tomar a medida drástica de acabar com as medidas drásticas. Temos de acabar com os beijos escaldantes, com os olhares penetrantes, com as agradáveis surpresas e com o brilho nos olhos. A esperança na humanidade só existe se pararmos de dizer esperança na humanidade. Nada mais poderá ser fechado com chave de ouro. Só assim é possível impedir que o futuro seja risonho.

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