Rui Nabeiro. Desapareceu a personagem maior de uma história de sucesso que começou na ilegalidade

Rui Nabeiro transformou contrabandistas em trabalhadores industriais e fez de Campo Maior um caso ímpar de iniciativa empresarial na inóspita região da raia do Alto Alentejo.

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Além de um monumento aos contrabandistas, Campo Maior também tem uma estátua de Rui Nabeiro António Carrapato

Na vila de Campo Maior, foi erguido, quando Rui Nabeiro ainda era vivo, um monumento evocativo do seu percurso singular. Mostra um grupo de 12 homens com mochila às costas que associa o perfil romanesco do contrabandista à acção marcante do empresário. Foram eles que possibilitaram a constituição da empresa de sucesso: a Delta Cafés.

A marca deste querer ficou bem vincada em Campo Maior, a partir da segunda metade do século XX. Nabeiro transformou o contrabando ilegal numa actividade empresarial: a indústria da torrefacção e comércio de cafés. Essa transformação possibilitou a sobrevivência do negócio mesmo após o desaparecimento do contrabando.

Com a abertura das fronteiras, o seu dinamismo estendeu-se ainda à produção de vinho, de azeite, ao retalho alimentar, ao comércio automóvel, à indústria metalomecânica, entre outros sectores. Hoje, as empresas de Rui Nabeiro dão trabalho a quatro mil trabalhadores. Campo Maior deixou de estar no interior remoto de Portugal, para assumir dimensão internacional.

Tudo começou durante a Guerra Civil espanhola, nas artimanhas e no jogo do gato e do rato com as brigadas de carabineiros espanhóis e da Guarda Fiscal portuguesa, quando os homens que se dedicavam ao contrabando faziam incursões para lá e para cá da linha de fronteira, em plena noite, cobrindo distâncias que poderiam atingir os 60 quilómetros e levando às costas uma carga que variava entre os 25 e os 40 quilos. O esforço exigia indivíduos física e mentalmente dotados, para o transporte de rebuçados, chocolates, calças de ganga, aspirinas e outros medicamentos, perfumes, tabaco, roupas, toucinho, tripas de porco, pneus, peças de automóvel, barras e folhas de cobre ou gado. E, claro, café, o produto mais cobiçado e “transaccionado” de Portugal para Espanha desde a Guerra Civil espanhola.

Era o tempo das lendas e das histórias do fantástico. O sociólogo espanhol Eusébio Medina Garcia destacou “Zé Lagarto” no livro que escreveu com o título Contrabando na Raia de Portugal, publicando uma entrevista à personagem que mais vincou o espírito contrabandista.

Começou a sua actividade clandestina aos 16 anos e esteve várias vezes preso. Aguentava três dias e três noites sem comer nem beber, uma faceta de que mais ninguém se podia orgulhar, particularidade que Inácio Vitória, antigo contrabandista natural do Alandroal, destacou ao PÚBLICO reconhecendo-lhe “valentia, lealdade e capacidade de liderança”.

Outra das figuras que marcaram o imaginário das comunidades raianas, alcunhado de “Patalarga”, era também português e residente na Juromenha. No final dos anos 70, atravessava o Guadiana em barcos de que era proprietário e calcorreava as pequenas aldeias de Olivença, na companhia do filho de 13 anos, para vender café, toalhas, imagens de Nossa Senhora de Fátima, jogos de damas e de xadrez, e até peças de automóveis e de camiões. As pessoas nutriam por ele simpatia e confiança, a ponto de lhe facultarem os palheiros para dormir.

Sempre atento e cuidadoso, e contando com a cumplicidade dos oliventinos, nunca foi detido pelos carabineiros, nem lhe foi apreendida mercadoria. Deixou o contrabando com a abertura das fronteiras e acabou os seus dias em 1996, com 86 anos, a guardar um rebanho de ovelhas nas margens do rio Guadiana.

Foram muitos destes contrabandistas, agindo por conta própria e assumindo riscos, que Rui Nabeiro transformou, numa primeira fase, em carregadores contratados e depois em assalariados de uma indústria que o próprio contrabando produziu.

Com 91 anos, desaparece a referência maior de todos aqueles que num dado período da história encontraram no contrabando um meio para superar a falta de alternativas que a agricultura não supria, para garantir o sustento das suas famílias.

O escritor alentejano José Luís Peixoto realçou no seu mais recente livro, Almoço de Domingo, uma expressão de Nabeiro que qualifica o seu longo percurso de vida: “Hei-de ser um rico diferente dos que há por aí.” A filantropia foi outra das facetas mais relevantes no percurso de vida do criador da Delta Cafés.

O funeral de Rui Nabeiro realiza-se na terça-feira, dia 21, em Campo Maior. A missa de corpo presente está marcada para as 12h, seguindo-se um cortejo fúnebre até ao cemitério de Campo Maior, onde o empresário será sepultado.​ No dia anterior, pelas 9h50, arrancam as cerimónias fúnebres. A essa hora, sairá da Novadelta um cortejo que passa por vários pontos até terminar na Igreja Matriz de Campo Maior. O velório começa às 12h de segunda-feira.

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