Juízes pedem fim de “chicana processual” por uso abusivo de direitos dos arguidos

Presidente da associação sindical dos juízes denuncia que há advogados a pedir dezenas de afastamentos de magistrados devido à falta de regulamentação da lei que mudou a distribuição de processos.

Foto
Manuel Ramos Soares alertou para o arrastamento de processos que envolvem pessoas poderosas LUSA/HOMEM DE GOUVEIA

O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Ramos Soares, pediu este sábado à ministra da Justiça a rápida regulamentação da lei que mudou a forma como se distribuem processos entre os diversos magistrados judiciais, denunciando o que chamou "chicana processual" por parte de advogados que estão a fazer um "exercício abusivo e, por isso, ilegítimo" dos direitos processuais dos arguidos e das suas garantias de defesa.

As declarações foram proferidas na sessão de encerramento do XII Congresso dos Juízes Portugueses, que terminou este sábado na Madeira, onde estiveram cerca de 600 magistrados judiciais.

Manuel Ramos Soares constatou que na criminalidade económico-financeira complexa, "quando estão envolvidas pessoas com poder na política, na banca, nos negócios, no desporto, na justiça, é que os processos não têm fim", lamentando que existam casos que "dificilmente chegarão a uma decisão final antes da prescrição".

O dirigente sindical insistiu que é preciso criar já um grupo de trabalho que "faça uma análise retrospectiva dos processos já terminados, localizando os momentos e causas dos bloqueios e propondo soluções para os eliminar".

"Não podemos continuar a olhar para isto como se nada fosse, parecendo cúmplices de uma ineficiência que objectivamente beneficia a impunidade de pessoas poderosas", defendeu Manuel Ramos Soares.

"Não pedimos, obviamente, que se estabeleçam limitações desproporcionais no exercício legítimo dos direitos processuais dos arguidos e nas garantias de defesa. Mas pedimos que haja uma intervenção legislativa que acabe com as possibilidades de exercício abusivo e, por isso, ilegítimo, desses direitos", afirmou o presidente da ASJP.

Dar poder ao juiz

O dirigente explicou que a associação já sugeriu que nas situações de manifesto abuso de direitos, a lei conceda ao juiz o poder de, por decisão irrecorrível, determinar o prosseguimento do processo sem entraves até ao julgamento. E relegue para um apenso "toda a discussão dos incidentes supérfluos e anómalos e para o momento do recurso final a verificação da sua pertinência".

Como exemplo disso, Manuel Ramos Soares denunciou o que está a acontecer nos tribunais por causa da "falta de regulamentação atempada da lei" que alterou as regras de distribuição dos processos.

"Por mais evidente que seja que a lei não pode ser aplicada sem essa regulamentação e por mais decisões que estejam a ser proferidas nos tribunais de recurso, todas no mesmo sentido, a verdade é que se descobriu mais um filão de incidentes para entorpecer a justiça", constatou o presidente da ASJP.

O líder da associação dos juízes diz que está na moda "pedir-se o afastamento do juiz por violação das regras de distribuição, com fundamento no facto de a tal lei não estar a ser aplicada".

E questiona: "Será normal, legítimo, aceitável que um só advogado, num só tribunal de recurso, em nove meses, suscite 23 incidentes de recusa dos juízes, duas, três e quatro vezes nos mesmos processos e que não haja maneira de pôr termo a isso, apesar das sucessivas decisões que negam provimento aos seus pedidos?"

Apesar de o dirigente sindical não especificar, percebe-se que o advogado de que fala é Pedro Delille, defensor do ex-primeiro-ministro José Sócrates na Operação Marquês.

Dirigindo-se à ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, também presente, Manuel Ramos Soares pediu: "Aquela lei tem de ser regulamentada imediatamente, não só porque o que lá está nos parece acertado, mas para acabar com estas situações de verdadeira chicana processual."

O presidente da ASJP voltou a alertar para os atrasos nos tribunais administrativos e fiscais que, "de promessa em promessa, de adiamento em adiamento, de um grupo de trabalho para o outro, não têm solução à vista", fazendo com que cidadãos e empresas esperem anos e anos por uma decisão judicial definitiva em litígios contra o Estado. "Isto é simplesmente inaceitável", resumiu.

E concretizou: "Estamos à espera da lei orgânica e dos meios para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, das assessorias, de mais recursos humanos, de mais capacidade de resposta nos tribunais centrais administrativos e da simplificação processual nos litígios de baixo valor ou massificados."

Manuel Ramos Soares voltou ainda a bater na questão da falta de transparência das arbitragens administrativas e fiscais em que o Estado é parte e se decidem temas de interesse público. "Não está certo, não pode estar certo, que o Estado seja condenado por um tribunal arbitral, secreto, sem controlo de legalidade do Ministério Público, a pagar a uma empresa privada centenas de milhões de euros por violação de uma cláusula contratual que o Tribunal de Contas já tinha dito que era nula", exemplifica. E exige: "Precisamos de mais controlo, transparência e integridade nesses mecanismos de justiça privada."

Entre as medidas que defendeu neste âmbito está a fiscalização das nomeação dos juízes-árbitros e do cumprimento dos seus deveres legais e deontológicos, a intervenção obrigatória do Ministério Público em todos os processos em que o Estado é parte e a publicidade dos procedimentos e das sentenças.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários