Memória popular no Sítio da Nazaré em perigo

Porque não se fez anteceder a elaboração do projeto para o Bico da Memória de consulta às comunidades locais, naquilo que estas entendessem constituir os adquiridos simbólicos e físicos daquele sítio?

Prepara-se para ter início uma importante intervenção nas arribas da Nazaré, tendo em vista melhorar acessos, circulações e usufruto dos espaços. Trata-se de obras necessárias, projetadas e geridas pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), obras há muito ansiadas. Em princípio, nada haveria a contestar, portanto.

Só que… Só que um dos sectores a intervir é no Bico da Memória, onde se situa a Ermida do Sítio (classificada como imóvel de interesse público) e todo o seu entorno, em parte histórico-artístico, arqueológico e geológico, em parte etnográfico e religioso (com um dos mais importantes santuários nacionais)… e até em grande parte mítico, de que é exemplo a narrativa célebre do milagre da Senhora ao cavaleiro D. Fuas. Trata-se de um dos mais icónicos locais não somente nazarenos, como portugueses e mesmo internacionais. Quase se poderia dizer que não existe coleção de bilhetes-postais do nosso país que o não contemple. Todos os cuidados serão, por consequência, poucos, na alteração do adquirido local.

E aqui começam as interrogações. Primeira: porque não se fez anteceder a elaboração de qualquer projeto para o Bico da Memória de consulta pública às comunidades locais, naquilo que as mesmas entendessem constituir os adquiridos simbólicos e físicos daquele sítio? Que investigação histórica prévia foi levada a cabo? Com a consulta de que fontes e a audição de que especialistas em património? Que estudos geológicos e de estabilidade foram feitos? Como foram divulgados e quem os validou? Será possível que a DGPC, de quem se deveria esperar a defesa do património, aceite ou até incite à destruição de pré-existências, sem possuir e divulgar tais estudos? Uma vez estabelecidas possíveis alternativas de transformação do adquirido visual do local, que consultas públicas foram feitas e durante que prazos? Finalmente quem exatamente e em que medida cada entidade contribuiu para a adoção dos projetos finais, em vias de serem executados? Deu a Câmara Municipal da Nazaré acordo ao que se prepara nesta zona patrimonial?

Estas questões afiguram-se-nos de extrema pertinência em face das primeiras notícias e da mais recente consulta que pudemos fazer dos projetos adotados pela APA. Neles verificamos que todo o ambiente e edificado do local, com exceção da Ermida do Sítio, parece ter sido considerado desinteressante, senão espúrio, ao ponto de poder ser destruído. Estão neste caso os muros erguidos pela Real Casa da Sra. da Nazaré em 1759, para proteger peregrinos e visitantes, implantados em zona de proteção do edifício, muros vernaculares que se preveem derrubar, para em seu lugar instalar um sistema “moderno” de prumos e tirantes metálicos, numa alteração radical do ambiente adquirido em séculos passados.

Haverá porventura quem entenda (mas onde estão os estudos comprovativos?) que o derrube dos citados muros é necessário para redução da carga sobre a consola de calcário subjacente? Sendo assim, então que dizer da floresta de perfurações (32, de mais de 10 metros cada) na referida consola, para instalação de um mais do que duvidoso mobiliário de estética e materiais “contemporâneos”, num local de arreigada apropriação societal, local e nacional, constituindo uma marca identitária portuguesa?

Bem vistas as coisas, esta é verdadeiramente a questão que confere ao caso em apreço dimensão paradigmática, que em muito o ultrapassa: afinal o que queremos do nosso património cultural, seja ele material ou imaterial? Queremos passá-lo pela rasoira “da destruição, dos alinhamentos, dos terreiros, da civilização vandálica” (para usar expressão de Alexandre Herculano), domesticando-o de acordo com a estética urbanita e os materiais da moda? Ou queremos preservá-lo enquanto sedimentação de longa duração, respeitando os adquiridos materiais e simbólicos que o povo foi criando, ainda e quando o fez sem a intervenção erudita?

Da resposta a esta questão depende, e muito, a preservação do Bico da Memória, na Nazaré. E daqui lançamos um apelo a que todos os que amam as nossas memórias comuns para que se mobilizem, desde logo nas Jornadas organizadas pelas Associações do Património na Nazaré em 11 de março próximo, e todos em uníssono ergamos, como Herculano igualmente nos incitava, “um brado a favor dos monumentos da história, da arte, da glória nacional, que todos os dias vemos desabar em ruínas”.

Dóris Santos, historiadora de Arte e museóloga

José Aguiar, arquiteto

Júlio Almeida, técnico do Património Cultural no Santuário da Nazaré

Luís Raposo, arqueólogo

Pedro Penteado, historiador e arquivista

Vítor Serrão, historiador de arte

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