Rosário reabilitou um prédio em Odivelas e arrendou-o a jovens — com apartamentos T4 a 550 euros

São oito casas, entre T3 e T4, com renda máxima de 550 euros para jovens entre os 25 e os 35 anos. Rosário sabe que não mudará o mundo, mas fará a diferença na vida de 15 jovens e seis crianças.

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Rosário reabilitou um prédio e arrendou os apartamentos a jovens por um preço muito abaixo do de mercado MATILDE FIESCHI

Rosário ouvia as conversas da filha e das amigas sobre o que seria o futuro. Sair de casa dos pais e conseguir arrendar ou comprar casa, construir uma carreira de sucesso (e bem remunerada), viajar, casar ou talvez ter filhos. Com 20 e poucos anos, esse futuro parece aproximar-se a uma velocidade galopante, embora a realidade tenda a abrandar esses sonhos.

Conseguir uma casa a preços comportáveis numa região como a de Lisboa é, nos dias de hoje, uma missão quase impossível. Esse sonho de independência acaba por se reduzir a um quarto, numa casa com cozinha e casa de banho partilhadas — agora também estes a preços exorbitantes. Como o quarto de Catarina Miguel, de 23 anos, em Lisboa, que lhe custava os mesmos 550 euros que paga agora por uma casa “a sério” no prédio em Odivelas que Rosário recuperou e onde criou o seu próprio programa de renda acessível para jovens à procura da independência.

Catarina sempre viveu em Lisboa, mas a mãe mudou-se e ela, a estudar Cinema, não teve outra hipótese senão arrendar um quarto. Nos últimos meses estava num na zona do Campo Pequeno, onde pagava esses 550 euros mensais. “Estava a viver praticamente só no quarto. Tinha acesso à cozinha e à casa de banho, mas não tinha relação com os meus colegas de casa, que nem sequer tinha sala. Estava sempre metida no quarto”, diz a jovem estudante. Era, como descreve, “muito desconfortável e claustrofóbico”.

Rosário Olaio, de 67 anos, ouviu várias histórias semelhantes, à boleia de um mercado de arrendamento ao qual é cada vez mais difícil aceder por quem tem rendimentos médios. Até que um dia olhou para um prédio seu em Odivelas que ficara desocupado e pensou: “Porque é que eu não faço alguma coisa por estes jovens?” E assim acabou por criar um miniprograma de arrendamento acessível, com tectos máximos de 550 euros por casas T4 (naquele local, o valor mediano das rendas para esta tipologia é quase o dobro — 1049 euros mensais), destinadas a jovens cuja idade ronde entre os 25 e os 35 anos.

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O prédio que Rosário recuperou pertencera à mãe MATILDE FIESCHI

O legado do avô

Há umas semanas, quando foi notícia que um senhorio de Vigo, em Espanha, recusara aumentar a renda de 500 euros que cobra a um jovem casal para que tenham “uma vida digna”, Rosário recebeu várias mensagens de quem sabe que também ela está a dar a mão a quem começa a trilhar uma vida independente. Sabe que não mudará o mundo, mas, tal como o senhorio espanhol, acredita que este é o seu “grão de areia” para ajudar no combate à crise de habitação e que fará a diferença na vida de 15 jovens e de seis crianças.

Entre eles está Catarina, que para ali se mudou no início de Fevereiro, com um amigo com quem divide as despesas. “Viver em Lisboa é diferente de estar a viver fora, mas, pelo que a casa é, compensa muito mais. Estou bastante satisfeita”, diz a jovem estudante. “Às vezes, encontravam-se quartos a este preço (275 euros) mas eram quase um cubículo. Além disso, a quantidade de pessoas à procura é enorme e qualquer coisa que se apanhasse como deve ser ia logo...”, continua.

O prédio de Rosário é um das dezenas que fazem o Bairro Olaio, em Odivelas, pensado pelo avô, Tomás Olaio, nuns terrenos de uma antiga quinta. “O meu avô fez este bairro.”

O prédio branco com pormenores azuis foi construído em 1967 e logo em 1968 foi arrendado ao Hospital Júlio de Matos. De internamento de doentes passou a centro de saúde na década de 80 até ao final de 2019, quando o Ministério da Saúde deixou o espaço.

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O prédio em Odivelas

Rosário olhou para o prédio e os interiores mal se reconheciam, dada a transformação que sofreram ao longo de tantos anos. Os tacos de madeira do chão foram arrancados para ser colocado linóleo; as casas de banho das casas tinham sido transformadas em consultórios médicos. A missão seria reconstruir os oito apartamentos daquele prédio de três andares com uma grande clarabóia no tecto.

As obras arrancaram pouco antes de a covid-19 chegar a Portugal. Mas as obras prosseguiram “com cinco equipas” no terreno e com “todos os cuidados”. “Eu estava sempre presente. Tive de tentar economizar ao máximo”, recorda Rosário, que já está reformada e que levou as netas para a obra para lhes passar esse conhecimento, tal como o avô fizera com ela.

As obras duraram 11 meses e custaram mais de 300 mil euros para recuperar oito apartamentos. Há sete T4 e um T3 com duas casas de banho. Os pisos cimeiros têm varandas. Arrendou-os por um período de cinco anos. Depois deste período, logo verá o que fará, “caso a caso”, diz Rosário.

A “inspiração”

Alguns dos jovens a quem arrendou as casas, já conhecia; outros apareceram-lhe à porta. Como Cátia Dias, de 38 anos, que andava desesperada à procura de um T3. Beatriz – hoje com quatro anos – já tinha nascido e o T2 que tinha também ali em Odivelas “por 500 euros numa cave antiga” era pequeno de mais para acolher os três filhos. “Comecei a procurar um T3 para ter um quartinho para ela e outro para os manos. Mas os preços eram completamente absurdos”, conta Cátia.

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Cátia Dias insistiu muito para que Rosário lhe arrendasse o apartamento para que pudesse dar melhores condições aos filhos

Um dia, viu o prédio em obras, com “tudo partido”, e foi lá bater à porta. “Vim cá chatear. Chateei o empreiteiro, os vizinhos. Eu costumo dizer que fui das chatas...”, recorda. Até que conseguiu o contacto de Rosário e convenceu-a arrendar-lhe um dos apartamentos.

Hoje, neste T4, são seis: Cátia, o marido, os três filhos e uma enteada que têm também à sua guarda. “Estou supercontente. O preço que pagamos aqui não pagaríamos em sítio nenhum”, diz Cátia.

Os filhos de 12 e dez anos têm hoje um quarto cada um. As meninas partilham. “Era impossível ser de outra maneira para que pudessem ter a comodidade que têm aqui”, reconhece a administrativa. Vão a pé para a escola. Têm tudo o que precisam nas proximidades. “Para a nossa família, acho que não conseguíamos outra casa melhor.”

No primeiro andar, Rita Pinto, de 28 anos, e o marido ali iniciaram a vida de casados. Casaram-se em 2020, mas antes disso já Rita tinha saído de casa dos pais para ir viver com uma amiga numa zona não muito afastada dali. “Pagava 650 euros por um T2 muito pequeno, um terceiro andar sem elevador.”

Casar e começar uma família estava nos planos, mas o preço das casas parecia um obstáculo a esse futuro. Foi a partir da partilha dessas angústias que Rosário decidiu avançar.

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É por isso que diz que Rita foi a “inspiração” de tudo isto. “A casa é óptima. Permite-nos começar a pensar em formar uma família. Tem imenso espaço e com um valor de renda que nos permite não estar estrangulados todos os meses e ter uma vida minimamente mais tranquila”, diz a jovem.

Rita é enfermeira, o marido, também com 28 anos, é militar. “Funcionários públicos, com vencimentos de funcionários públicos. Com rendimento médio, apesar de termos os dois mestrados. Ele é engenheiro electrotécnico e eu sou enfermeira especialista em saúde infantil”, resume. Por agora, o objectivo de comprar casa é impossível. “Há-de ser um projecto a médio prazo. Enquanto não conseguirmos, estamos aqui”, diz a enfermeira.

Ainda tentaram a candidatura ao Programa de Renda Acessível da Câmara de Lisboa, mas foram excluídos, por ter sido considerado que “tinham vencimentos demasiado bons”.

As colegas enfermeiras que têm uma casa sozinha têm de trabalhar em dois empregos. “Um dos empregos é para pagar a renda da casa; o outro é para poderem viver.” Também Rita trabalha em dois locais para poder juntar algum dinheiro para um dia comprar uma casa. “Não preciso desse dinheiro para pagar a renda porque vivo com outra pessoa, mas preciso desse dinheiro para poder comprar uma casa”, diz.

Recuperar o “espírito de vizinhança”

Rosário tem como inquilinos músicos, militares, um psicólogo, uma advogada e um juiz, uma enfermeira, um funcionário de uma bomba de gasolina, por exemplo. “É uma grande diversidade.” Quer que convivam, que ali se viva um certo “espírito de vizinhança”. Delega-lhes a responsabilidade pela limpeza das áreas comuns do prédio.

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Rosário Olaio

O seu “sonho” seria agora transformar outro prédio em casas T1 e T2 para que, por exemplo, jovens solteiros possam viver sozinhos.

Apesar de ter tomado esta opção de cobrar rendas mais baixas do que o mercado dita, Rosário, que tem outras casas arrendadas na região de Lisboa, diz que não critica quem não o faz e rejeita moralismos. “Eu faço porque posso. Posso dar-me ao luxo de fazer isto porque tenho outras coisas. Por exemplo, tenho uma casa na Rua das Madres, na Madragoa, em Lisboa, que alugo caríssima a estrangeiros. Paga três rendas aqui. Os estrangeiros beneficiarem de uma renda barata? Não é justo...”, diz.

Ainda assim, talvez seja um exemplo para outros senhorios de que pode ser possível criar algo assim. Rita também o espera. “Os senhorios precisam mesmo de 1500 euros por mês por cada apartamento?...”

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