Mau planeamento dos EUA ajudou os taliban a regressar ao poder

Pensando no envio massivo de armas para a Ucrânia, o Inspector Geral para a Reconstrução Afegã dos EUA sublinha que deixar a monitorização para depois “cria mais problemas do que resolve”.

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O porta-voz dos taliban, Zabiullah Mujahid, na primeira conferência de imprensa depois do regresso a Cabul EPA/STRINGER

Um novo relatório de um gabinete de monitorização governamental detalha como o mau planeamento na retirada militar dos Estados Unidos do Afeganistão, depois de anos de controlo desadequado, contribuiu para o rápido colapso do governo apoiado pelos ocidentais, à medida que os taliban se aproximavam de Cabul.

O relatório, divulgado esta terça-feira, descreve uma retirada “abrupta e descoordenada” em 2021, assim como uma deficiente contabilidade das armas enviadas para o Afeganistão – com uma estimativa de 7 mil milhões de dólares (6,6 mil milhões de euros) em equipamento militar deixado sob controlo dos taliban. Outro problema, aponta o relatório, foi o fracasso em criar no país forças de segurança “independentes e auto-sustentadas”, depois de 20 anos e de um apoio internacional de 90 mil milhões de dólares (85 mil milhões de euros).

Esta é a última de uma série de avaliações realizadas pelo Inspector-Geral Especial para a Reconstrução Afegã (SIGAR, na sigla original) e analisa o desmoronar das forças de seguranças afegãs e o regresso dos taliban ao poder no país onde a América travou a sua mais longa guerra. Muitas das conclusões confirmam relatos anteriores feitos pelo The Washington Post e por outras organizações de media sobre os últimos dias do governo afegão e a retirada das tropas dos Estados Unidos.

Em relatórios divulgados o ano passado, o gabinete de monitorização disse que dezenas de milhões de dólares desapareceram das contas bancárias do governo afegão durante o regresso dos taliban e descreveu como, no período que o antecedeu, a paranóia tomou conta dos membros do governo em Cabul, ao mesmo tempo que o caos dominava as forças de segurança.

Segundo o relatório, o acordo assinado com os taliban pela Administração Trump, em 2020, facilitou o desenlace, “resultando numa sensação de abandono” no governo e na população do Afeganistão. “O acordo desencadeou vários acontecimentos fundamentais para compreender o colapso [das forças de segurança]”, lê-se no documento.

O relatório apresentado agora ao Congresso surge um ano e meio depois do regresso do grupo extremista ao poder ter surpreendido o mundo. Desde então, os afegãos enfrentam o aumento da pobreza e um ataque aos direitos civis. O relatório do SIGAR também coincide com um envio massivo de armamento ocidental para a Ucrânia que levantou questões sobre como deve realizar-se a monitorização.

“Há um desejo compreensível durante uma crise de nos focarmos em conseguir enviar o dinheiro e preocuparmo-nos com a monitorização mais tarde, mas demasiadas vezes isso cria mais problemas do que aqueles que revolve”, diz o relatório afegão, citando o inspector-geral, John Sopko. “Tendo em conta o actual conflito e o número sem precedentes de armas que está a ser transferido para a Ucrânia, o risco de que algum equipamento acabe no mercado negro ou nas mãos erradas é provavelmente inevitável”, afirma.

No Afeganistão, concluiu o SIGAR, mesmo “antes do colapso”, os EUA não tinham “uma contabilidade completa do equipamento e do pessoal”. O relatório também responsabiliza parcialmente a corrupção que consumiu as forças de segurança afegãs e a incapacidade do governo para garantir a segurança nacional.

Enquanto os taliban assumiam o controlo da capital afegã, em Agosto de 2021, as tropas dos EUA e os seus aliados transportavam de avião mais de 100 mil pessoas, numa evacuação marcada por caos, violência e imagens angustiantes de pessoas que tentavam agarrar-se a aviões norte-americanos.

No fim de 2021, um denunciante no Reino Unido descreveu a gestão britânica da evacuação como “arbitrária e disfuncional”. Milhares de emails de afegãos potencialmente elegíveis para um lugar nos aviões ficaram por ler no Ministério dos Negócios Estrangeiros, afirmou.

O denunciante, que na altura era um responsável do Ministério dos Negócios Estrangeiros, apontou para uma “equipa desadequada”, com funcionários “chamados a tomar centenas de decisões de vida e de morte sobre as quais nada sabiam”.

Responsáveis ocidentais admitiram que muitos afegãos, incluindo alguns que trabalharam com as forças dos EUA e aliadas, foram abandonados em dificuldades, quando a evacuação terminou, deixando o Afeganistão completamente sob domínio dos taliban, depois de 20 anos de guerra.

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

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