Habitação inacessível: um retrato do território português

Não é só nas áreas metropolitanas que há real dificuldade em aceder à habitação. A relação entre o preço da casa e os rendimentos auferidos põe em dificuldades habitantes de vários pontos do país.

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O índice de inacessibilidade territorial demonstra que os problemas com o acesso à habitação extravasam as áreas metropolitanas e são encontrados, também, em áreas de baixa densidade e de declínio populacional Sergio Azenha

O desafio era tão complexo quanto importante: perceber como é que as dificuldades no acesso à habitação, devido aos seus elevados custos, são sentidas nos diferentes territórios do país. Complexo, porque os mecanismos de formação de preço nos vários mercados da habitação são relativamente opacos – é muito difícil controlar tanto a quantidade como o tipo de oferta, os preços e os seus determinantes. E importante, porque não se pode olhar para um país apenas à luz bipolar das suas duas áreas metropolitanas, onde há muitos casos de vulnerabilidade e um maior clamor social.

O desafio que os investigadores Paulo Batista, João Lourenço Marques e Eduardo Anselmo Castro se propuseram resolver, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), foi o de construir um índice de inacessibilidade territorial – de forma a cruzar o preço da habitação e o nível de rendimentos das famílias à escala das freguesias.

O resultado foi editado no estudo O Mercado Imobiliário em Portugal, lançado em 2022, e os mapas e diagramas de dispersão ali publicados confirmaram todas as suspeitas. Os problemas extravasam as áreas metropolitanas e detectam-se também em áreas de baixa densidade e de declínio populacional. “Talvez a dispersão territorial que há nestes problemas tenha sido o mais surpreendente”, admite João Lourenço Marques.

Os problemas de que fala João Lourenço Marques – investigador da Universidade de Aveiro, onde lecciona as áreas de Planeamento Urbano e Regional, desenvolvendo métodos quantitativos e técnicas de apoio à tomada de decisões – são sobretudo as desigualdades sociais que, defende, é preciso conhecer para combater.

“Conseguimos compreender que nas áreas metropolitanas, onde há maior concentração de população, e onde há maior procura de casas, os preços subam muito, tornando-se inacessíveis para uma franja considerável da população. Mas também há este tipo de problemas noutras zonas do território, e em vários contextos sociodemográficos”, constata. Importa conhecê-los.”

E se a política pública é algo que se quer obviamente transversal, “ela não pode deixar de olhar às particularidades do território e definir orientações que permitam responder a estas particularidades”, sintetiza João Lourenço Marques. A conclusão, defende, é “óbvia”: “A resposta habitacional em cada um dos territórios terá de ser diferenciada para produzir resultados efectivos.”

Como se constrói um índice

Para a construção deste índice, os investigadores aprofundaram indicadores que já estão relativamente consolidados entre a comunidade científica (como a taxa de sobrecarga do preço da habitação, usada pelo Instituto Nacional de Estatística, com inquérito às famílias, e pelo Eurostat por exemplo), de forma a poderem ser aplicados de uma forma mais intensiva e recorrente no tempo.

As convenções internacionais fixaram nos 40% o limite do rendimento que as famílias podem alocar para despesas de habitação – acima deste valor, as taxas de esforço passam a determinar sobrecarga das despesas. De acordo com o INE, a taxa de sobrecarga das despesas em habitação foi 5,9% em 2021, registando um acréscimo de 1,8 pontos percentuais face ao ano anterior.

“Este valor até está abaixo da média europeia, e até poderia pensar-se que não é um valor crítico. Mas temos de nos lembrar que são famílias, e que estes 6% surgem, como em todas as estatísticas, à custa de valores extremos, acima e abaixo, e escondem questões críticas em termos da própria desigualdade. Foi isso que fomos procurar no território”, explica Lourenço Marques.

Não sendo possível questionar família a família, os investigadores usaram as freguesias como unidades administrativas para aferir onde se encontram os problemas de vulnerabilidade habitacional. Procuraram a proporção de agregados familiares residentes em subsecções onde o valor estimado para o custo habitacional (mediano) é superior ao valor (mediano) apurado para o respectivo município; e onde o rendimento familiar estimado (mediano) é inferior ao valor mediano dos rendimentos familiares do município. E cruzaram os padrões territoriais e os processos de transformação urbana para perceber como a diversidade das dinâmicas sociais, económicas e espaciais se associam a padrões distintos de acessibilidade da habitação.

Há seis processos de transformação urbana tipificados, e que permitem arrumar em outras tantas categorias os padrões do território: expansão urbana (crescimento das áreas urbanas de maior dimensão, originando grande concentração de população, actividades económicas e serviços); urbanização (passagem de modos de ocupação de baixa densidade para alta densidade, impelida pela migração das populações para os centros urbanos); declínio urbano (descida da população e envelhecimento demográfico, abandono de infra-estruturas e património edificado); declínio rural (abandono de áreas rurais, encerramento de serviços, despovoamento progressivo); contra-urbanização (processo de urbanização de áreas rurais que se situam para além de zonas urbanas ou periurbanas) e suburbanização (expansão das áreas urbanas para as suas periferias).

Com base nestes padrões territoriais, dir-se-ia que as transformações urbanas que ocorrem hoje em dia no território português apoiam uma divisão entre o litoral e o interior do país. Para o interior, o processo prevalecente é o declínio rural, que contrasta com a urbanização em curso em algumas freguesias, particularmente nas sedes de município. Para as regiões costeiras, há um padrão decrescente entre as freguesias mais centrais em grandes aglomerações urbanas (como acontece tanto nas zonas metropolitanas como em Braga ou Setúbal, por exemplo) e as restantes.

O que os investigadores encontraram, quando aplicaram os índices de sobrecarga habitacional e de risco de inacessibilidade ao território a estes padrões, foi uma realidade muito heterogénea. A sobreposição entre as transformações urbanas e os diferentes mercados de habitação revela frequentemente insuficiências na satisfação das necessidades habitacionais.

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Mesmo em territórios onde há declínio rural encontram-se 24% de famílias com risco de inacessibilidade territorial. E em territórios de contra-urbanização e suburbanização há índices de risco de inacessibilidade igualmente elevados como nos territórios em urbanização.

João Lourenço Marques repara que, por vezes, se encontram valores em territórios suburbanos mais altos do que em sítios urbanizados. E que nas regiões interiores surgem fenómenos de consolidação em pequenos centros urbanos e rurais, que poderiam desempenhar um papel fundamental no combate ao despovoamento, e que também parecem já estar a enfrentar questões de acessibilidade habitacional. “Têm tantos problemas como os que encontramos em territórios social e economicamente mais dinâmicos”, sublinha.

Injustiça espacial

Sem descurar as conclusões preocupantes que encontrou no estudo publicado pela FFMS, João Lourenço Marques seguiu outra linha de investigação, para tentar quantificar o número de portugueses que não conseguem melhorar a sua localização de vida.

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“Nos índices de sobrecarga habitacional, estamos a falar de situações de facto, de pessoas que estão a pagar uma casa e que estão a ter um determinado tipo de rendimento. Mas há uma franja muito grande de população que não tem sobrecarga, porque nem sequer se dá ao luxo de ter sobrecarga”, avisa o investigador da Universidade de Aveiro.

Com base numa tese de doutoramento que orientou (de Filipe Feitosa) e que está para publicação, sobre justiça espacial, João Lourenço Marques afirma que 5,75% dos portugueses não têm qualquer circunstância económica que lhes permita melhorar a sua localização de vida. De acordo com Lourenço Marques, esta é “uma realidade muito complexa” e que tem expressões diferentes, com diversos níveis de impacto e de intensidade.

Em causa está, por exemplo, população rural sem condições de procurar melhores condições de vida, de estudantes que não saem da casa dos pais e que viajam para as universidades. “Estes não aparecem nos índices de sobrecarga, mas é uma sobrecarga escondida, porque não têm sequer oportunidade de a ter”, argumenta o investigador. “É uma realidade que afecta mais de 500 mil pessoas”, antevê.

O estudo de Feitosa procura trazer conceitos de justiça abstracta para parâmetros objectivos e mensuráveis de forma a identificar, à escala nacional, onde as desigualdades no acesso podem ser definidas como injustiça espacial. E por isso sugere que as políticas em relação à distribuição equitativa de serviços e recursos (como escolas e casas) devem considerar não só o estatuto socioeconómico ou a utilização mista da terra, mas também as capacidades de escolha da população afectada.

Por sua vez, e voltando ao estudo publicado pela FFMS, João Lourenço Marques sublinha que os problemas de acessibilidade habitacional têm uma distribuição territorial que contraria a ideia mais comum de que os problemas se concentram nos maiores aglomerados urbanos, onde os preços são mais elevados. “A verdade é que nestas áreas também há maiores rendimentos”, contrapõe o investigador. Por isso, os poderes públicos deverão igualmente preocupar-se com os problemas de acessibilidade em territórios de baixa densidade e declínio populacional.

“É necessário haver um olhar territorial diferenciado no desenho e implementação das políticas públicas que impactam a habitação. Para haver resultados efectivos, é necessário que as respostas habitacionais sejam diferenciadas”, defende João Lourenço Marques.

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