Três anos de “Brexit”: rutura com a UE, fissuras por todo o Reino

A completar quase sete anos do referendo e no “aniversário” de três anos da saída, o Reino Unido, interna e externamente, ainda sente as consequências de uma decisão que está longe de ser unânime.

No dia 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido efetivou a sua saída da União Europeia (UE), após o resultado do referendo de 2016 que confirmou a vontade da maioria da sociedade britânica. Michel Barnier, negociador-chefe da UE para o "Brexit", referiu no seu livro My Secret Brexit Diary que aquele 31 de janeiro foi um dia emotivo por ser “tão esperado e desejado por uns, tão temido por outros”.

No dia do referendo, nós, europeus, acompanhámos o desenrolar dos resultados certos de que os britânicos tinham votado para a permanência; mas o resultado não poderia ter sido mais diametralmente oposto ao nosso desejo. Para além dos resultados terem como consequência imediata uma crise geopolítica na Europa – ainda se revelam em dimensões do "Brexit" por concluir –, o impacto de um país ter saído da União sentiu-se especialmente a nível interno, pela divisão na política doméstica de um Reino cada vez mais (des)Unido.

A completar quase sete anos do referendo e no “aniversário” de três anos da saída, o Reino Unido, interna e externamente, ainda sente as consequências de uma decisão que está longe de ser unânime. O impasse no Protocolo da Irlanda do Norte originou uma crise política na região, sem fim à vista, bem como um avolumar das negociações entre o Reino Unido e a UE. O Protocolo, que estabeleceu uma fronteira alfandegária entre a Irlanda do Norte (situada na ilha da Irlanda) e a Grã-Bretanha, permite à UE proteger o acordo comercial pós-"Brexit" e o mercado único europeu por meio da mediação realizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), bem como as trocas entre ambas as regiões. O objetivo para o Protocolo decorrer dessa forma traduz-se numa tentativa de se evitar uma fronteira política entre as duas Irlandas.

Desde fevereiro de 2022, porém, a Assembleia da Irlanda do Norte (Stormont) está suspensa, uma vez que o Partido Unionista Democrático (DUP), que se coloca contra o Protocolo da maneira como se encontra redigido, abandonou o executivo e, posteriormente, não apoiou um novo governo de poder compartilhado no país com o Sinn Féin, partido que defende a união com a República da Irlanda. O DUP vê a atuação do TJUE em decorrência do Protocolo como uma ingerência da UE, algo que afasta a Irlanda do Norte de todo o Reino Unido.

O Governo de Rishi Sunak, primeiro-ministro britânico, possui agora cerca de 12 semanas para que novas eleições para Stormont ocorram, mas ainda não é certo que um executivo seja formado, mesmo que um novo acordo sobre o Protocolo seja alcançado nos próximos meses entre o Reino Unido e a UE. O DUP tem referido que só apoiará uma nova formação se um conjunto de sete exigências for considerado no Protocolo, arriscando-se assim a região a um contínuo escalar de instabilidade, provocada por uma das consequências diretas do "Brexit".

Simultaneamente, com a concretização das eleições, não se deve apenas considerar os resultados dos votos para Stormont de maio de 2022, que deram vitória ao Sinn Féin, mas igualmente observar que a maioria dos deputados eleitos da ala nacionalista nas eleições anteriores, 53 contra 37 da ala dos unionistas (onde se insere o DUP), apoia a manutenção do Protocolo – posições políticas incompatíveis. Para ambos os lados das negociações, Reino Unido e UE, o Protocolo não está a funcionar como deveria e, nesse sentido, novas negociações estão a tomar forma para se tentar resolver pontos de discórdia, estando o início de abril como prazo não oficial a fim de se alcançar um acordo final – a lembrar que este 10 de abril marca os 25 anos do Acordo da Sexta-Feira Santa, que pôs fim ao conflito entre protestantes e católicos. Por um lado, a UE pretende reduzir as verificações fronteiriças e toda a burocracia inerente ao Protocolo, defendendo a manutenção e intervenção do TJUE; por outro, o Reino Unido pretende acabar com a maioria das verificações de mercadorias existentes e com o poder do TJEU na mediação e no controlo do Protocolo – situação de impasse que poderá pôr em risco o Acordo da Sexta-Feira Santa, caso uma fronteira física seja erguida entre as Irlandas.

Faz-se lembrar também que, em dezembro de 2020, o Reino Unido e a UE alcançaram o acordo comercial pós-"Brexit" que, contudo, não se aplicou ao território de Gibraltar, o qual faz fronteira terrestre com Espanha. Até hoje, o pequeno território ultramarino britânico (parte tecnicamente não integrante do Reino Unido), onde 96% da população votou para permanecer na UE, encontra-se à deriva no rescaldo dos três anos do "Brexit". Todavia, um acordo de princípio sucedeu entre os governos de Londres e Madrid (mandatário da UE), permitindo a inclusão de Gibraltar no espaço Schengen, base para um acordo final que se encontra a ser negociado entre as partes. A partir de então, os acordos entre Espanha e o Reino Unido têm-se caracterizado por serem acordos ad hoc (caráter temporário), ressuscitando a possibilidade de ocorrer um “hard 'Brexit'” nesse pequeno território, não só pelas negociações improdutivas, mas igualmente pela pressão que ambas as partes sentem para concluir o acordo devido às eleições espanholas previstas para este ano.

O Governo conservador britânico, desde Boris Johnson, tenta efetivamente “concluir o 'Brexit'” (Get Brexit Done), eliminando qualquer vestígio da UE no Reino Unido, como é exemplo a proposta de revogação de centenas de leis europeias até ao final de 2023, remetendo para segundo plano questões importantes como o Protocolo da Irlanda do Norte e a questão de Gibraltar, bem como a unidade interna. Contudo, o Partido Conservador encontra-se hoje num momento de alta impopularidade resultante de diversas conjunturas, no qual o "Brexit" e as suas consequências se traduzem como elementos dinamizadores dessa desaprovação.

Ao impasse e indefinição sobre o Protocolo e o acordo de Gibraltar, somam-se ainda as questões de independência da Escócia, surgidas não só pela proximidade desta com as instituições europeias, mas também pelos problemas na devolução de poderes a Holyrood, o Parlamento escocês, capítulo à parte das sucessivas crises que compõem o intricado cenário posterior ao 31 de janeiro de 2020. O "Brexit" faz anos, agora, a colher os seus impactos e a ratificar o temor de tantos – um aniversário em que o receio de uma “guerra comercial” entre o Reino Unido e a UE se transfigura de uma ideia remota para uma realidade cada vez mais pungente e em que a própria união do Reino Unido torna-se num debate político e identitário sem precedentes sobre questões de soberania e fronteira.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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