Natureza Humana e Pátio do Carrasco, a curta dá cartas em Roterdão

Em 2023, não temos curtas em Berlim. Mas temos duas no festival dos Países Baixos, que não são nada más e podem fazer pensar num novo prémio depois de Pedro Neves Marques.

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Em "Natureza Humana", de Mónica Lima, estamos ainda no tempo da pandemia para acompanhar um casal
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"Pátio do Carrasco", de André Gil Mata

Não é preciso evocar a ascensão gradual mas imparável de Ice Merchants, de João Gonzalez, até aos Óscares para falar do peso internacional que a curta-metragem made in Portugal tem vindo a obter. Nem é preciso irmos aos três Ursos de Ouro do formato em Berlim: basta recordar que, faz agora um ano, foi Pedro Neves Marques a trazer para casa o prémio máximo das curtas em Roterdão, com Tornar-se Um Homem na Idade Média.

Daí que, num ano em que (coisa-rara-nunca-vista nos últimos anos) Berlim não incluiu nenhuma produção portuguesa para o concurso Berlinale Shorts, seja o festival dos Países Baixos, que arrancou na quarta-feira, a erguer a bandeira das curtas portuguesas. Na competição Ammodo Tiger, há dois títulos em liça, e desde logo dois títulos cujas características “fora da caixa” explicam um pouco da atracção que o cinema por cá feito tem lá fora.

Com Natureza Humana — o primeiro título nacional a ser exibido, no programa Ammodo Tiger Short 1, com sessões esta quinta, 26, sexta, 27, e terça, 31 — estamos ainda no tempo da pandemia para acompanhar um casal (Crista Alfaiate e João Vicente), que combate o confinamento o melhor que pode, ele cuidando da pequena horta nas traseiras, ela lamentando não ter sido ainda capaz de lhe dar um filho. Não é só a presença de Crista Alfaiate que remete para os Diários de Otsoga de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes; é também a partilha do ecrã dos seres humanos com a natureza que insiste em crescer pelo meio das crises humanas, das minhocas na terra ao pavão que se passeia pelas ruas do bairro (belissimamente fotografado em tons de Verão lisboeta por Faraz Fesharaki).

Mas o filme luminoso e tranquilo de Mónica Lima respira, por entre uma evidente dívida à “escola O Som e a Fúria” (por aqui também sentimos ecos de João Nicolau, por exemplo), um outro aroma mais cosmopolita: foram várias as vezes em que pensámos no diálogo entre o espaço e a personagem dos irmãos suíços Zürcher, ou na fantasia solar do georgiano Alexander Koberidze. Não é por acaso, Mónica Lima estudou, como eles, na Academia de Cinema e Televisão de Berlim, e Natureza Humana — pelas nossas contas a sua quarta curta — é uma co-produção com a Academia e com a New Matter Films que já estivera por detrás de O Que Vemos quando Olhamos para o Céu?, filme que revelou o georgiano.

Admitindo que é frustrante “ler” esta curta mais à luz do que se faz “ao seu lado” do que à luz do trabalho da própria realizadora (que já nos tinha impressionado em 2017 com Verão Saturno), há também que dizer que Natureza Humana confirma a segurança do olhar de Mónica Lima e revela, acima de tudo, uma cineasta pronta para “dar o salto” para a longa.

Paradoxalmente, o seu colega português no concurso de curtas de Roterdão, André Gil Mata, já deu o salto para a longa e dá agora um passo lateral com Pátio do Carrasco — no programa Ammodo Tiger Short 3, com exibições sexta, 27, sábado, 28, e quarta, 1. “Lateral”, porque esta adaptação de Um Fratricídio, de Franz Kafka, se inscreve naquele meio-termo ingrato de duração que é demasiado longo para uma curta e demasiado curto para uma longa: Pátio do Carrasco são 47 minutos, nem mais nem menos tempo do que o necessário para este fait-divers criminal em “prólogo”, quatro capítulos e “epílogo” que se constrói por acumulação de camadas.

Como sabe quem viu A Árvore, a longa que o realizador levou a Berlim há um par de anos, para Gil Mata a atmosfera é ela própria um forte elemento narrativo, e nunca mais do que neste huis-clos de vizinhança à volta de um pátio desconsolado, Rashomon sórdido que conta a mesma história de quatro pontos de vista sucessivos (a mulher, o vizinho, o marido, o amante) e pede ao espectador que reconstitua ele próprio toda a cena.

Não vamos aqui voltar a invocar São Béla Tarr, com quem Gil Mata estudou, nem o slow cinema no qual a própria organização de Roterdão o parece querer catalogar; o que é muito nítido em Pátio do Carrasco é uma extraordinária segurança formal paredes-meias com a obsessão por parte do cineasta, uma convicção profunda no que está a fazer que torna esta média-metragem no seu filme mais conseguido, e mais impressionante, até hoje. E que faz de André Gil Mata mais uma das figuras “iconoclastas” do cinema que cá se faz, perseguindo a sua musa por um território cada vez mais pessoal.

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