João Gonzalez tem coisas para dizer sem palavras. E os Óscares ouviram

Realizador de animação, ilustrador e músico é o autor de Ice Merchants, o primeiro filme português nomeado para os Óscares. Uma curta que o criador da “trilogia da solidão” fez entre amigos.

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Ice Merchants é o primeiro filme português nomeado para os Óscares Manuel Roberto / PUBLICO

A primeira vez que João Gonzalez se imaginou a fazer curtas-metragens de animação foi a ver La Maison en Petits Cubes (2008), do japonês Kunio Kato. A curta que lhe “mudou um bocado a vida” era um dos filmes propostos numa masterclass com um nome sugestivo: “Passos essenciais para ganhar um Óscar.”

Sete anos e três curtas depois, o realizador de animação, ilustrador e músico de 26 anos continua sem fazer “a mínima ideia de como se ganha um”, ri-se. Mas tirou notas — e nunca esteve tão perto de descobrir.

Ice Merchants, projecto final do mestrado em Animação na londrina Royal College of Arts, que Gonzalez continuou a desenvolver durante a pandemia, é o primeiro filme português nomeado para os Óscares, cujos vencedores serão conhecidos a 12 de Março.

A curta é uma co-produção portuguesa, francesa e britânica (de Bruno Caetano, a cooperativa de produção COLA, Wildstream e da Royal College of Art, respectivamente). O realizador manteve sempre as “expectativas baixas”, mesmo quando a curta-metragem feita entre amigos não parava de ganhar prémios.

“​Pouca gente por cá sabe, mas Portugal tem das animações autorais mais fortes do mundo. Vou a um festival qualquer lá fora e toda a gente sabe quem é a Regina Pessoa e o Abi Feijó e aqui em Portugal não há tanto esse conhecimento”​, comenta. Por feliz coincidência, a nomeação histórica acontece na véspera do centenário do cinema de animação português. A presença na 95.ª edição dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é especialmente importante por trazer o mediatismo que, de outras formas, as curtas-metragens raramente conseguem sugar, garante (em 2014, Daniel Sousa, português de origem cabo-verdiana e radicado nos Estados Unidos, foi nomeado na mesma categoria pela curta de animação Feral, uma produção norte-americana).

“Ia ser um engenheiro muito mau”

João ​Gonzalez voltou a desenhar na faculdade, depois do ensino secundário em Ciências, que escolheu um pouco por causa dos amigos, a achar que iria parar a um curso em Engenharia Informática. Quando não entrou, seguiu para a segunda opção, a licenciatura em Multimédia da ESMAD, no Porto, onde nasceu e vive.

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Nos seus filmes, João Gonzalez não usa palavras e tem personagens quase sem feições e expressões faciais Manuel Roberto

“Foi a melhor coisa que me aconteceu, porque eu ia ser um engenheiro muito mau”, suspeita. Acabou por ser a forma de se permitir descobrir “o que gostava mesmo de fazer”. Ao mesmo tempo, voltou a sentar-se em frente ao piano, que tinha tocado até entrar na adolescência, influenciado pelo pai, pianista e professor. “Isso foi muito importante para a forma como faço filmes.”

Sem usar palavras e com personagens quase sem feições e expressões faciais, é com a música que estabelece o tom dos filmes, desde o processo de pré-produção. Melancólico desta vez, definiu, ao compor a banda sonora da curta, tocada por músicos portugueses da Escola Superior Música e Artes do Espectáculo (ele toca piano e sintetizadores). Às vezes, apercebermo-nos de quais são as nossas limitações e aceitá-las, arranjando formas criativas de as contornar, é a forma de descobrirmos a nossa voz artística, combinando com os nossos fortes.

Conta frequentemente que os filmes que faz começam por uma imagem que lhe vem à cabeça, sem saber porque se lembrou dela, quando está “prestes a adormecer ou a sonhar”. “No caso do Ice Merchants, partiu de uma casinha presa a um precipício muito alto.” Ficou curioso. “Quem viveria ali?”, perguntou-se, depois de a desenhar e modelar em 3D, não para usar a tridimensionalidade no filme, mas para ficar a conhecer todos os cantos do material dos seus sonhos. “Que rotina teriam? O que fariam? E porquê?”

“Eu sabia que ia ser um filme sobre perda, acima de tudo, mas depois os detalhes e as nuances vou desbloqueando e descobrindo quanto mais exploro essa realidade que vem do [meu] subconsciente”, explica. “E o que gosto mesmo de fazer é pegar nessas realidades e usá-las como ferramenta metafórica para falar sobre algo que me toca e que quero explorar. De certa forma, é uma maneira terapêutica de descobrir mais sobre mim.”

Por vezes, a realidade é distante (o último mercador de gelo, se confiarmos no título de um minidoc de 2012, vive no Equador e vende o gelo do monte Chimborazo, o pico terrestre mais afastado do centro da Terra). Outras, é pessoal.

Em Nestor (2019), um marinheiro precisa de ter todos os seus objectos sempre no mesmo exacto lugar, mas vive numa casa-barco que não pára de oscilar. “Fala sobre transtorno obsessivo-compulsivo, que é algo com que me relaciono. Mas há uma barreira muito óbvia entre a minha realidade e a realidade irrealista do filme, é quase como usar um pseudónimo. Eu tenho mais à vontade em abordar o tema dessa forma do que se fosse uma coisa mais autobiográfica.”

Se pusermos frames das três curtas de Gonzalez lado a lado, vemos três homens em paisagens inóspitas a olhar para a vida a correr lá em baixo. “Sim, homem triste isolado da sociedade”, diz, interrompendo a descrição. “Os meus filmes já foram classificados como a trilogia da solidão. Não foi de propósito, inconscientemente há coisas em comum com todos os filmes que fazemos.”

A repetição e a rotina estão igualmente presentes na vida do pai e do filho que todos os dias saltam de pára-quedas da varanda da casinha em Ice Merchants para venderem o gelo aos habitantes no vale da montanha.

“Às vezes, estas rotinas e rituais a que prestamos muito pouca atenção, mas que temos todos os dias com as pessoas mais próximas, são uma das bases das relações entre seres humanos. No filme, essa base tem uma representação física.”

De volta ao Porto, a sua “cidade preferida”, João Gonzalez está a descobrir que a melhor coisa para fazer depois de terminar um filme é “viajar com ele”. Por agora, o festival de cinema por onde gostou mais de passar foi o de Guadalajara, no México, um dos maiores da América Latina. “Deu para espairecer e descomprimir as ideias. É muito bom quando conseguimos viajar através de algo que fizemos e nos demorou tanto tempo.”

Ainda fica atrapalhado quando lhe dizem que choraram com o seu filme, mas já se senta mais descontraído na cadeira quando o vê projectado na tela. “Com este filme, sofro ligeiramente menos. Os outros dois eram mais complicados de ver em público. Uma das coisas que me põem mais feliz é que este foi o primeiro projecto que fiz em que estou mesmo contente e tenho gosto que as pessoas vejam. Não me sinto tão encolhido na sala.”

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