Há um novo cometa que nos visita. Só volta daqui a 50 mil anos

Dizem que os cometas são como os gatos: têm cauda e são imprevisíveis. A expressão aplica-se ao cometa que esta quinta-feira passa perto do Sol e a seguir da Terra. Não se sabe quão brilhante vai ser.

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O cometa C/2022 E3 (ZTF) fotografado a 9 de Janeiro de 2023 nas ilhas Canárias José Francisco Hernández/Altamira/Cortesia da NASA

A pergunta que muitos têm na ponta da língua é: o novo cometa que desperta atenções por estes dias, e está a chegar ao interior do nosso sistema solar, vai ser visível a olho nu? A expectativa actual é que talvez tal seja possível entre o final deste mês e início de Fevereiro, ainda que provavelmente no limite da visibilidade à vista desarmada. Mas quem tiver uns simples binóculos pode vê-lo já agora, durante a madrugada. Falamos do cometa C/2022 E3 (ZTF).

Se não for madrugador ou não tiver binóculos, há ainda outras formas de observar este cometa em tempo real, sem sair do sofá, já durante esta próxima madrugada, e de que já daremos detalhes. A oportunidade para o ver é agora ou nunca mais, pelo menos para quem vive actualmente na Terra, já que ele só regressa daqui a 50 mil anos.

Nesta visita ao interior do sistema solar, o cometa C/2022 E3 (ZTF), descoberto em Março de 2022, atinge esta quinta-feira (12 de Janeiro) o seu ponto mais perto do Sol, o periélio, ficando a 166 milhões de quilómetros. E a 1 de Fevereiro será a vez de alcançar o seu ponto mais perto da Terra, o perigeu, a uma distância de 42 milhões de quilómetros. “Apesar de a passagem pelo periélio ser a ocasião em que sofrerá maior intensidade de radiação solar, só a 1 de Fevereiro estará mais perto da Terra e, por isso, mais facilmente visível”, explica Máximo Ferreira, astrónomo amador e director do Centro Ciência Viva de Constância.

Só quando estiver então mais perto de nós, a partir do fim de Janeiro e início de Fevereiro, é que se espera que possa ser visível sem precisar de binóculos ou telescópios, embora as últimas previsões apontem para que o seu brilho (magnitude) deva ficar um pouco abaixo do limiar que os olhos humanos conseguem ver sem ajudas (magnitude 6).

A 31 de Janeiro, a posição do cometa ficará acima do horizonte logo a partir das 19h, pelo que a sua observação será possível durante toda a noite, e não apenas de madrugada, esclarece Máximo Ferreira. Do início de Fevereiro em diante, o brilho do cometa deverá cair de forma acentuada, segundo a agência espacial NASA.

“Não é certo que seja observável à vista desarmada, a menos que ocorra alguma anomalia na evolução do seu brilho relativamente ao que é normal”, antevê Máximo Ferreira. “De qualquer modo, um bom binóculo ou um pequeno telescópio darão bem para ver a pequena mancha luminosa deste cometa que nenhum ser, actualmente sobre a Terra, voltará a ver, dado que o seu regresso está previsto para daqui a 50 mil anos”, realça ainda o director do Centro Ciência Viva de Constância, que tem por tema central a astronomia.

Depois da descoberta do cometa, os registos sucessivos da sua trajectória permitiram deduzir qual é a sua órbita e perceber que dá uma volta ao Sol em cerca de 50 mil anos. A última vez que nos tinha visitado ainda existiam neandertais, que desapareceram há 28 mil anos, da Península Ibérica, o seu último local reduto. E os humanos da nossa própria espécie, Homo sapiens sapiens, se o admiraram ou se assustaram com ele nos céus, não foi da Europa que o viram. Porque há 50 mil anos estávamos nós a chegar às portas do continente europeu.

O gato cósmico já pôs a cauda de fora

As incertezas quanto ao brilho do cometa, mesmo a poucos dias da sua passagem pelas proximidades do Sol e da Terra, devem-se ao facto de as previsões sobre o brilho destes viajantes cósmicos serem sempre difíceis, em particular em cometas recém-descobertos, como é o caso deste. Se uns excedem as expectativas, outros são uma desilusão. Os cometas, diz-nos o astrónomo amador Pedro Ré, parafraseando uma expressão comum relativa a estes objectos cósmicos, são como os gatos: têm uma cauda e são imprevisíveis. Fazem o que querem, portanto.

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Fotografado a 9 Janeiro de 2023 nas ilhas Canárias, o cometa verde já exibe as suas caudas Francisco Hernández/Altamira

Ora o novo gato que vagueia pelo nosso bairro cósmico já pôs a cauda de fora. Os cometas são bolas de gelo sujo ou, por outras palavras, pequenos objectos que contêm água (na forma de gelo) e poeiras misturadas com essa água. Vêm dos confins do nosso sistema solar, de dois reservatórios situados para lá do planeta Neptuno. Ao aproximarem-se do Sol, ocorre a sublimação da água congelada – ou seja, a água passa directamente do estado sólido para o gasoso.

Em torno do núcleo do cometa, forma-se então uma nuvem difusa de gases e poeiras, bem como a cauda tão característica dos cometas. À nuvem de gases e poeiras em redor do núcleo chama-se “coma”, ou “cabeleira”. Quanto à cauda, na realidade, há pelo menos duas: uma esbranquiçada, mais curta, composta pelas poeiras, que são arrastadas pela libertação dos gases; e outra azulada composta por gases ionizados por acção do vento solar e que se estende por centenas de milhões de quilómetros.

“Quando o cometa está a passar perto do periélio, é maior a radiação solar que sobre ele actua e, por isso, os gases congelados na parte exterior passam ao estado gasoso e formam caudas rectilíneas cujos comprimentos podem atingir vários milhões de quilómetros”, explica Máximo Ferreira. “Simultaneamente, partículas sólidas – do tamanho de grãos de areia – soltam-se do gelo, originando caudas que se encurvam. Estas caudas reflectem a luz do Sol e o seu estudo dá alguma indicação sobre a constituição das partículas, ao passo que as caudas rectilíneas são os gases (ionizados) tornados luminosos pela energia solar e, também elas, revelam de que gases se trata”, acrescenta o astrónomo.

Dissemos que os cometas têm pelo menos duas caudas, porque, dependendo do tipo de gases que contêm, podem ter até mais. “Há gases que fazem várias caudas. Há cometas que parecem uma vassoura das bruxas", diz Máximo Ferreira.

No final de Dezembro e já este mês, a NASA divulgou imagens de astrónomos amadores do cometa C/2022 E3 (ZTF). Já denotavam a presença de uma cabeleira verde e das caudas. É este cometa verde que sobressai nas imagens. Para o fotografar, é preciso acoplar uma câmara a um telescópio. O envio de fotografias do cometa, tiradas pelos nossos leitores a partir de Portugal, também é bem-vindo para o email ciência@publico.pt.

Mesmo que o cometa nos venha a surpreender, tornando-se mais brilhante do que o previsto, os astrónomos pensam que, ainda assim, será menos espectacular do que o cometa Hale-Bopp (1997), que causou sensação nos céus, ou o Neowise (2020).

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Para onde olhar no céu? Quando? E de onde?

Nos próximos dias, o C/2022 E3 (ZTF) vai aproximar-se da constelação da Ursa Menor, da qual faz parte a famosa Estrela Polar. Esta quinta-feira, 12 de Janeiro, o cometa só estava acima do horizonte (a Nordeste) às duas horas da madrugada. À medida que os dias decorrerem, vai-se encaminhando para a Estrela Polar e ficando mais alto no céu, se o observarmos à mesma hora (às duas da manhã). Ou então, diz-nos ainda Máximo Ferreira, poderemos vê-lo sempre perto do horizonte, mas progressivamente mais cedo.

E quais os melhores locais de observação? “O cometa estará ao alcance de observadores – de preferência munidos de binóculos ou telescópios – colocados em qualquer lugar com fraca (ou nenhuma) poluição luminosa, sem grandes obstáculos (edifícios, árvores ou montanhas) na direcção de Norte e, naturalmente, em noites de céu limpo”, responde Máximo Ferreira.

Para quem quiser fazê-lo na companhia de astrónomos, o Centro Ciência Viva de Constância, se as condições meteorológicas permitirem, incluirá a observação do cometa na sua sessão habitual de sábados à noite, a 28 de Janeiro e a 3 de Fevereiro, entre as 20h30 e as 22h30. Na noite de 1 de Fevereiro (quarta-feira), quando o C/2022 E3 (ZTF) estiver mais próximo da Terra, a observação irá repetir-se no mesmo horário. Para ir, basta fazer a marcação prévia.

Outra das possibilidades é o sofá de casa, vendo em streaming as observações de vários telescópios. O Projecto do Telescópio Virtual, por exemplo, oferecerá essa possibilidade já nesta madrugada de 13 de Janeiro, através do seu site ou do canal de YouTube: a transmissão online em directo começa às 04h de Portugal continental. O mesmo acontecerá a 2 de Fevereiro, à mesma hora, por ocasião da passagem do cometa mais perto da Terra.

Os cometas entre receios e humor

Detectado a 2 de Março de 2022, o cometa C/2022 E3 (ZTF) foi localizado graças a um programa que rastreia no céu objectos em mudança rápida, ou transientes. Este programa tem uma câmara de grande campo acoplada a um telescópio instalado no Observatório Palomar, na Califórnia. O conjunto designa-se por Zwicky Transient Facility, de que resultaram as letras ZTF e onde o cometa vai buscar parte do nome.

Sendo um cometa de longo período, os cientistas pensam que é oriundo de um reservatório situado nos limites do sistema solar, na nuvem de Oort, tal como o cometa Hale-Bopp. De mais perto, da cintura de Kuiper, onde Plutão já está incluído, vêm cometas que visitam o Sol mais frequentemente, ao fim de dezenas de anos ou menos. O Halley é o exemplo mais famoso dos cometas ditos de “período curto”, que fez a última passagem perto do Sol em 1986, altura em que uma sonda da Agência Espacial Europeia (ESA), a Giotto, passou perto do seu núcleo, enviando imagens e confirmando que era mesmo uma bola de neve suja. O regresso do Halley é aguardado em 2061.

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O Halley fotografado pela sonda europeia Giotto em Março de 1986, a dois mil quilómetros de distância do cometa ESA/MPS

Se hoje nos fascinam, em tempos idos estes viajantes solitários do cosmos eram associados sobretudo a desgraças e ao fim do mundo. Era temor que provocavam.

Em meados do século XV (em 1456), o Papa Calisto III excomungou o próprio cometa Halley. Considerou-o “um instrumento do Diabo” e ordenou que o Padre-Nosso passasse a incluir “livrai-nos Senhor do Mal, do turco e do cometa”.

Já no início do século XX (em 1910), o Halley, que a cada 75 ou 76 anos faz uma aparição, aterrorizou. Temia-se que a órbita da Terra passasse pela cauda do cometa e que os seus gases nos envenenassem. Os charlatães da época aproveitaram logo para vender comprimidos contra cometas.

Também em Portugal a passagem do Halley em 1910 gerou medo, com relatos da população a sair de Lisboa, de tentativas de suicídio ou de uma procissão em Marco de Canavezes. Outros levaram a aparição do Halley de forma mais descontraída, gozando os supostos últimos momentos em “comezainas” ou aproveitando para fazer humor nos jornais à conta do fenómeno astronómico.

No Diário de Notícias, um anúncio da inauguração de um hotel em Lisboa punha as coisas assim: “Magnífico observatório para os hóspedes poderem admirar o célebre COMETA HALLEY, com o auxílio dos mais modernos apparelhos astronómicos”. O Primeiro de Janeiro tinha como título de um bilhete-postal ilustrado “Halley que se faz tarde!”, pondo em diálogo dois homens: “E a sua mulher não receia o cometa?” “Já temos tudo combinado: se acabar o mundo, raspamo-nos para Alenquer.”

Hoje a vinda de cometas já não mete medo. Curiosos e astrónomos estão a postos, seja para apreciar o C/2022 E3 (ZTF) como objecto de aparição única nas nossas vidas, seja para aprender mais sobre a composição dos cometas. Até a última coqueluche dos telescópios espaciais, o James Webb, lançado no espaço em Dezembro de 2021, lhe deverá dedicar tempo de observarão. E depois, adeus, até sempre.

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