Uma revolução silenciosa na floresta

Os trágicos incêndios de 2017 ditaram a urgência da gestão agrupada da floresta em Portugal. Os 220 milhões de euros da “bazuca” deram força a 70 áreas integradas de gestão da paisagem, as AIGP.

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Zona de intervenção florestal em que se procura evitar a propagação de fogos daniel rocha

Maria Fernanda, José Lopes e Afonso Matias nem olharam para trás quando a Câmara de Mação e os técnicos da associação florestal Aflomação os abordaram para entregarem a gestão das propriedades florestais à gestão conjunta das áreas integradas de gestão da paisagem (AIGP) que, ouviram dizer, estavam a ser criadas no país com dinheiros da “bazuca” nas zonas mais vulneráveis aos incêndios.

“Assisti a uma reunião e fui fácil de convencer”, conta ao PÚBLICO Maria Fernanda, professora de Geografia aposentada a viver em Lisboa desde 1977. Detém cinco parcelas na União das Freguesias de Mação, Penhascoso e Aboboreira, “todas afectadas pelos incêndios” de 2017. São cerca de dez hectares onde crescem carvalhos, oliveiras, choupos, medronheiros, pinheiros-mansos e oliveiras, mas para cuja gestão Fernanda já se vê forçada a contar com a ajuda da Aflomação.

Não tem “nem vida, nem conhecimento” para o fazer: “Gasto mais dinheiro [na manutenção das terras] do que o que tiro de lá.” Os filhos — uma, arquitecta, a viver na Irlanda; outro, engenheiro de som, a viver na Austrália — não têm forma de a ajudar, pelo que, “se não houver uma gestão agrupada, aquilo não dá nada”.

Afonso Matias foi presidente da Junta de Ortiga oito anos e é agora o presidente do Centro de Solidariedade Social Nossa Senhora das Dores, naquela freguesia. É proprietário de 17 parcelas com “mais ou menos cinco hectares” de pinhal e olival e também não se sente apto para uma gestão individual rentável dos terrenos. O único filho vivo, a nora e os dois netos do ex-autarca vivem em Santarém. Já tinha aderido a uma Zona de Intervenção Florestal (ZIF) em 2005, pelo que, quando ouviu falar das AIGP, nem hesitou.

“Sozinhos, não fazemos nada; o tempo do orgulhosamente sós acabou”, diz Afonso Matias, que assinou sem reservas a “declaração de intenção de adesão” à AIGP de Ortiga. Sim, por ora foi uma intenção de adesão. Adiante, quando tudo estiver detalhado e se souber o apoio anual a receber do Fundo Ambiental pelos serviços dos ecossistemas, aí Afonso e os demais proprietários assinarão contratos, “preto no branco”, com a entidade gestora.

O que são as AIGP?

As AIGP foram criadas pelo Governo em Junho de 2020, embora o documento orientador para o desenho das operações integradas de gestão da paisagem (OIGP) só dois anos depois tenha visto a luz do dia. Foi publicado pela Direcção-Geral do Território (DGT) em Março de 2022. Nesse mês, também se conheceu o dossier que traça a capacitação técnica das entidades gestoras das 70 AIGP aprovadas no país.

Nasceram todas “essencialmente nas freguesias em que mais de 40% do território se encontra sob perigosidade alta e muito alta de incêndio rural” ou “nas áreas onde tenham ocorrido incêndios de grandes dimensões, com área igual ou superior a 500 hectares”, explicou ao PÚBLICO o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que “tem vindo a colaborar na definição dos territórios integrados”.

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Se as 70 AIGP avançarem tal qual foram pensadas e tiverem sucesso, dar-se-á uma pequena revolução na floresta em Portugal. Estão identificados 292 mil prédios rústicos e 141 mil hectares de terras em territórios vulneráveis (6898 hectares sob gestão da empresa pública Florestgal) que deverão ser intervencionados nos próximos anos em 37 concelhos do território do continente.

Falamos, ainda assim, de apenas 2,5% dos espaços silvestres do país e de 5% dos 3,3 milhões de hectares classificados como território vulnerável aos incêndios. Susana Carneiro, directora executiva do Centro Pinus, associação que agrega os principais agentes do negócio do pinho, crê que esta é “uma oportunidade única para muitos territórios desenvolverem uma solução à sua medida e com sustentabilidade futura”. Vê, no entanto, esse desígnio sob outro prisma: “Precisamos de soluções para a gestão agregada de pequenas propriedades” e as AIGP “poderão não ser a única”.

Pagamentos “mediante demonstração de resultados”

Nesta fase, cabe às entidades gestoras de cada AIGP a minuciosa tarefa da abordagem aos proprietários e de gizar, parcela a parcela, hectare a hectare, a futura transformação e valorização da paisagem dos concelhos abrangidos. O dossier que daí resultar — a OIGP — conterá a matriz e os fundamentos que sustentam as opções, inclusive a caracterização do regime de fogo, a sua causalidade e análise de risco antes e após a proposta de paisagem futura, a programação da execução e o modelo de exploração.

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O verde espreita numa floresta em Mação ADRIANO MIRANDA

Cada OIGP deve ainda conter informação precisa sobre o investimento e financiamento das operações, fontes de apoios disponíveis, modelos de gestão e de contratualização das acções a realizar com os donos das terras e, por fim, o programa de monitorização da execução e de avaliação de resultados.

Fernanda do Carmo, directora-geral do Território, explicou ao PÚBLICO que cada projecto de OIGP terá de “apresentar os modelos de compromisso e de adesão dos proprietários”, sendo que “a repartição dos montantes será, seguramente, o resultado desse processo”.

A responsável da DGT diz que “o grande esforço financeiro de transformação da paisagem ocorrerá na fase associada às acções de reconversão e valorização da paisagem, nos dois primeiros anos”. O investimento, financiado pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), é “da ordem dos 220 milhões de euros”. O montante a atribuir a cada AIGP, esse, “dependerá do projecto de OIGP que venha a ser aprovado”.

A taxa de financiamento é de “100% do valor global elegível” e o prazo máximo para os beneficiários concluírem a execução física e financeira das intervenções é 30 de Setembro de 2025. É uma imposição do PRR, vertida na OT [Orientação Técnica] n.º 3/C08-i01.01/2022, onde constam as tabelas para os valores de financiamento a atribuir no investimento inicial.

Mas o Ministério do Ambiente e da Acção Climática, tutelado por Duarte Cordeiro, deixa um alerta: os pagamentos só serão feitos “mediante demonstração de resultados de gestão das áreas abrangidas/elegíveis”. Ou seja, as entidades gestoras das AIGP só receberão os apoios públicos após demonstração das intervenções no terreno e das respectivas despesas.

Calendário “de muito difícil implementação”

O cronograma prevê que as primeiras OIGP e respectivo parecer das entidades oficiais só deva ser conhecido em Abril de 2023. As segundas OIGP, apenas em Agosto. Isto significa que o busílis da questão poderá ser o calendário das operações, que “começa a ser de muito difícil implementação”, antevêem vários agentes económicos ouvidos pelo PÚBLICO.

A Florestgal, a primeira empresa pública de gestão e desenvolvimento florestal a ser criada em Portugal, cujo presidente, Rui Gonçalves, foi afastado do cargo após um artigo de opinião no PÚBLICO e que recentemente justificou o acto na Assembleia da República, está ciente das dificuldades.

“Trata-se de um calendário muito exigente, tendo em conta o horizonte temporal de execução do PRR (2025)”, admite fonte oficial daquela empresa. O PÚBLICO tentou falar com Rui Gonçalves, que manifestou indisponibilidade para, nesta fase, acrescentar mais informação para lá do já vertido no seu artigo de opinião.

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A Florestgal é a entidade gestora de três OIGP em Portugal, todas localizadas no Pinhal Interior: Travessa (no município de Pampilhosa da Serra); Aguda (Figueiró dos Vinhos); Ribeira de Mega (Pedrógão Grande). A área total é de 6898 hectares, envolvendo pelo menos 9254 prédios rústicos.

“Temos uma oportunidade de oiro”, mas “andamos a correr contra o relógio por causa do PRR”, lamenta, por sua vez, Pedro Serra Ramos, presidente da Associação das Empresas Florestais, Agrícolas e do Ambiente (Anefa), que em meados de Dezembro organizou umas jornadas técnicas no Centro de Exposições de Santarém para debater as perspectivas de trabalho das empresas do sector nos próximos anos.

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Adivinhando o boom que aí vem quando as entidades gestoras das AIGP começarem a contratualizar empreitadas de corte, arranque e plantação de árvores e de limpeza de terrenos na floresta, o presidente da Anefa não está optimista: “Se acontecer como foi com a florestação das terras agrícolas em que se prometeram prémios e depois houve muitos prémios por pagar, é o descrédito total”, diz ao PÚBLICO.

“Estabilização de emergência” é o mais urgente

O ICNF, a que preside Nuno Banza, faz notar que “as OIGP vigoram por 25 anos, podendo este período ser prorrogável até ao limite de 50 anos, sempre que se justifique”, embora as acções e medidas a executar sejam “calendarizadas de acordo com as medidas urgentes e prioritárias”. Estas, “na maioria destes casos, passam pela estabilização de emergência nos territórios após ocorrência de incêndios florestais” e “devem ser concretizadas no curto prazo”. As restantes, a médio e longo prazo, “vigoram entre os 25 e 50 anos”.

O relatório anual de 2021 da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), a que preside Tiago Oliveira, elogia as AIGP. Diz que são “plataformas de gestão agrupada de proprietários, reforçando o modelo associativo das Zonas de Intervenção Florestal [ZIF] que tem vindo a encontrar fragilidades na aplicação de modelos de negócio rentáveis — algo a que as AIGP procuram responder —, assumindo desde logo uma nova componente de remuneração que são os serviços de ecossistemas”.

António Louro, vice-presidente da autarquia de Mação, tinha dito ao PÚBLICO que “as ZIF são uma meia-receita” e que “a lei das ZIF [Decreto-Lei n.º 127/2005, assinada pelo então primeiro-ministro José Sócrates] é completamente esquizofrénica”. Hoje, explica o autarca, esse modelo de gestão conjunta da floresta está “num limbo”.

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António Louro, vice-presidente da autarquia de Mação ADRIANO MIRANDA

Um dos entraves ao avanço das OIGP, dizem os agentes do sector, é a falta de definição — e publicação — dos montantes a pagar pelos tão falados serviços de ecossistemas nos próximos 20 anos. Dos inúmeros contactos realizados pelo PÚBLICO, o presidente do extinto Observatório dos Incêndios, Francisco Castro Rego, é um dos que apontam essa lacuna, confirmando que há “uma grande preocupação com os prazos” e que “toda a gente está aflita com os timings”, até porque “os planos de plantação podem derrapar”.

Também Pedro Serra Ramos, presidente da Anefa, António Louro, vereador de Mação, Armando Pacheco, da Anefa, Francisco Gomes da Silva, da Biond, e os próprios proprietários se queixam dessa indefinição, mais a mais nesta fase do processo.

Em paralelo, dirigentes associativos e especialistas do sector florestal avisam que, este ano, a época de Outono/Inverno “está perdida” se se quisesse avançar com o arranque de espécies florestais, preparação de terrenos e novas plantações com boas perspectivas de vingamento, aproveitando as condições de humidade dos terrenos e de precipitação mais favoráveis, até para evitar retanchas (substituição de plantas mortas). E o presidente da Anefa lembra que, quando realmente se avançar com os trabalhos nos 37 concelhos do país abrangidos pelas 70 AIGP, “pode não haver, nem mão-de-obra, nem equipamentos suficientes”.

Acresce um problema: serão necessários milhares, porventura milhões, de exemplares de espécies florestais para as novas plantações nas áreas intervencionadas. O PÚBLICO questionou o ICNF se há condições de fornecimento e que papel assume o instituto a este nível.

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O presidente, Nuno Banza, explicou que “o ICNF contribuirá com a disponibilização, para o mercado, de plantas produzidas nos quatro viveiros sob sua gestão [Amarante, Malcata, Monte Gordo e Valverde], os quais se encontram numa fase de revitalização, prevendo-se um aumento considerável na produção de plantas”.

Por outro lado, “tratando-se a produção e disponibilização de materiais florestais de reprodução no mercado de uma actividade essencialmente de natureza privada, existindo procura, seguramente que os viveiristas se adaptarão aos requisitos do mercado”.

O presidente da Federação Nacional dos Baldios (Baladi) partilha destas preocupações. Diz que, “associado à infindável burocracia imperante a que os serviços da administração pública nos habituaram, vamos ter muitas dificuldades em obter mão-de-obra disponível, dado o estado demográfico de grande parte das regiões do nosso interior”. Armando Carvalho teme que, “perante este quadro e as vicissitudes que lhe estão associadas, o mais provável é que as verbas alocadas no PRR a este sector acabem por ser restituídas a Bruxelas”.

A Baladi não promoveu nenhuma AIGP. O que fez, diz o presidente, foi “diligenciar junto dos seus agrupamentos de baldios esta nova figura de ordenamento e gestão de áreas florestais”. Fruto disso, “os agrupamentos dinamizaram cerca de 20 AIGP em vários pontos do país”.

Arrancar eucaliptos: 600 euros/hectare

Fernanda do Carmo desvaloriza os atrasos. “As preocupações que sinaliza são passíveis de serem apontadas nesta área como outras em momentos de forte investimento público”, diz a directora-geral do Território, acreditando nas “capacidades de o mercado reagir, sobretudo se os estímulos são claros e dirigidos”.

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Arranque de eucaliptos em Benfeita, Arganil, em 15 de Outubro de 2018, uma acção simbólica para lembrar os incêndios de 2017 Nelson Garrido

Claro e dirigido é o apoio público de 600 euros por hectare, no primeiro ano de OIGP, para arrancar eucaliptos em áreas elegíveis, uma medida que não cativa, nem proprietários, nem agentes económicos. Pedro Serra Ramos, presidente da Anefa, diz que “depende”. “Há zonas de eucalipto sem rentabilidade em que 600 euros por hectare pode ser atractivo”, já nas propriedades mais rentáveis, “pagando só 600 euros será difícil convencer alguém a fazer uma mudança de cultura”.

Armando Pacheco, presidente da Federação Nacional das Cooperativas de Produtores Florestais (Fenafloresta), também está céptico: apesar dos prometidos 600 euros por hectare para o arranque daquela espécie, “onde houver eucalipto vai ser mais difícil convencer os proprietários”, dada a rentabilidade de curto prazo que todos sabem que esta espécie garante.

Francisco Gomes da Silva, director-geral da Biond, Forest Fibers from Portugal, a nova designação da associação da indústria papeleira, para cujas empresas qualquer redução da área de eucalipto é crítica, está “expectante”. Aliás, face a todo o projecto das AIGP, que considera “de muito difícil implementação”, já que tudo envolve “centenas de proprietários, fundos significativos e com retorno a longo prazo”. Este dirigente, que já ocupou a pasta de secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural (2013-2014), prefere esperar: “Estamos cá para ver.”

A directora-geral do Território sublinha que a apresentação das OIGP está “prevista, na sua maioria, para 2023”, de acordo, aliás, com o cronograma público. A concretização dos prazos, diz Fernanda do Carmo, “depende das próprias entidades gestoras”, revelando que, “nesta data, nenhuma apresentou, ainda, formalmente uma proposta de OIGP”. O prazo para a execução das verbas do PRR, esse, já o sabemos: 2025. E é “inadiável”, a menos que Bruxelas dê um passo atrás, lembra a DGT.

Incertezas à parte, Afonso Matias foi “dos primeiros a aderir”, em Mação, a uma AIGP. O proprietário florestal falou com o PÚBLICO numa tarde inverneira de Novembro no salão do lar do Centro de Solidariedade Social Nossa Senhora das Dores, em Ortiga. E elogiou “o trabalho do engenheiro [António] Louro”, vice-presidente do município com os pelouros do Ambiente, Paisagem e Floresta, que, diz o proprietário, “sempre teve muita vontade que estas coisas avançassem”.

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Há proprietários que gostavam de ter sido integrados nas AIGP e não foram daniel rocha

Há largos anos que é pelas mãos de António Louro, presidente do Fórum Florestal e da Aflomação, uma das mais representativas estruturas federativas da floresta em Portugal (cerca de 50 associações agregadas e milhares de produtores florestais), que passa todo o pensamento estratégico para os 40 mil hectares de área de floresta naquele concelho. São “80 mil prédios rústicos, todos cadastrados desde os anos 1980”.

Em Junho de 2020, volvidos três anos dos mortíferos incêndios de Pedrógão, ainda Portugal não sonhava com o cheque milionário da “bazuca”, já Louro falava ao PÚBLICO dos planos de Mação e dos concelhos limítrofes (Sertã, Vila de Rei, Oleiros e Proença-a-Nova) para a gestão agrupada e profissionalizada do território. E assumia que, no seu executivo camarário, há “uma antiga e assumida preocupação com o planeamento, o ordenamento e o mapeamento do território”. Mais ainda após os incêndios de 2017, em que se constatou que “o nosso sistema de gestão do território colapsou”.

AIGP “já vem tarde”

José Lopes, 85 anos, mora na freguesia de Evendos, também em Mação. É dono de três parcelas com cerca de cinco hectares com pinheiros, eucaliptos, sobreiros e oliveiras. Não esquece o drama dos incêndios. Ardeu-lhe “grande parte” de uma propriedade em 2017, explica ao PÚBLICO, enquanto chama para nos abrigarmos da chuva.

Vive ali com a mulher. Fala, orgulhoso, das duas filhas, dos quatro netos e de um bisneto, que vêm à aldeia “muitas vezes” — na sala, a cadeira de refeições para bebé não deixa mentir —, mas, por viverem em Lisboa, não têm condições de acompanhar de perto a gestão das terras.

Reformado e a ver os anos voar, José está ansioso: “Estou morto que tomem conta da gestão” dos terrenos. Até porque, assume: “Tenho confiança nas pessoas que estão no processo”, que “já vêm do tempo das ZIF”. Recorda, aliás, os “bons tempos” em que a freguesia de Evendos era “muito movimentada”.

“Quando vim para cá, havia muita gente, indústrias, lagares de azeite, uma fábrica de pimentão, havia estufas de secar o pimento e transformava-se em colorau”. Só a cooperativa agrícola do lugar de São José das Matas — fundada em 21 de Abril de 1922, a mais antiga de Portugal — “empregava dezenas de pessoas” e, a partir da estação da Barca da Amieira, “iam comboios cheios de pessoas e mercadorias para Lisboa”.

Luís Esteves, técnico florestal da Aflomação formado em Recursos Agro-Florestais e Ambientais pelo Politécnico de Castelo Branco, conduz o PÚBLICO num velho jipe ao fundo do vale e mostra-nos as carcaças dos antigos armazéns da CP, contíguos à linha férrea, paralela ao Tejo. Onde antes havia campos agrícolas e bardos de videiras nas encostas quase até ao rio, hoje “há esteva a crescer por todo o lado”. “Já se tentou aproveitar o óleo” extraível deste arbusto (Cistus ladanifer), mas, diz Luís, “concluíram que não era rentável”.

O edifício da estação da Barca da Amieira está impecável, já os armazéns e o cais de mercadorias estão em ruínas. Como a economia local. “As aldeias estão vazias; temos proprietários, mas não temos agricultores”, sentenciara o vereador António Louro na manhã daquele dia, constatando que as populações se “retiraram de uma paisagem sustentável que foi construída durante milénios num tratado de equilíbrio com a natureza”, o que gerou “condições para os grandes incêndios acontecerem”.

Para quem vai do norte pela A1, entra na A13 para a zona do pinhal interior e serpenteia depois as estradas da região, está à vista dos olhos. António Louro, que conhece cada palmo do território, antevê: no ponto em que a regeneração natural da floresta está, após os fogos devastadores de há cinco anos — quilómetros e quilómetros de eucaliptal, na maior parte, de um e outro lado da auto-estrada —, “qualquer pequena coisa é suficiente para se dar uma tragédia”.

Como era expectável, o eucalipto teve uma forte resposta vegetativa depois dos incêndios e, a par disso, as sementes armazenadas na copa das árvores e no solo germinaram. Depois de 2017, diz o vereador de Mação, há novamente “um barril de pólvora à espera de acontecer”.

Insultos e ameaças em Mação

São nove as AIGP aprovadas no concelho de Mação. Quatro propostas pela câmara e cinco em que a proponente é a Azr – Gestão Territorial, S.A., entidade criada com o apoio da Aflomação e que vai fazer a gestão, explica António Louro. Só a AIGP de “Cardigos agrega 3400 hectares [de área], 6800 propriedades, 2020 proprietários, dos quais 20% são heranças indivisas e 75% [dos donos] vivem fora do concelho”. Estão na fase da “elaboração das propostas de OIGP”.

“A propriedade da terra mantém-se; está fora de questão o contrário”, vinca o vice-presidente da autarquia, tranquilizando os mais cépticos. Ainda assim, a complexidade do processo não torna as coisas fáceis e a adesão dos proprietários às AIGP está longe de ser unânime.

O presidente da Câmara de Mação (PSD), Vasco Estrela, que já vai no terceiro mandato e com maioria absoluta, está “moderadamente optimista”. “Esta é uma oportunidade única” para o país, garante ao PÚBLICO, mas “os obstáculos são muitos” e “a gestão conjunta [da floresta] não dá votos”. Dá é “muitos calafrios”. E gera insultos e ameaças, como os que recebeu na câmara através de cartas anónimas expedidas pelo correio a partir de Beja, apelidando-o de “Putin de Mação” ou “Papa-Tudo”. A António Louro chamaram-lhe “Oligarca de Mação”.

“Ladrão, gatuno, um dia és morto”; "Assalto à propriedade rústica do concelho”; “Eles já se consideram donos disto tudo”; “Agora os fundos já não lhes chegam, querem servir-se das AIGP para no final ficarem com tudo”; “Não participe em aldrabices/vigarices”; “Denuncie as negociatas deles”, são algumas das frases contidas nas missivas. Foi tudo “entregue à GNR”.

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Algumas das ameaças aos autarcas de Mação recebidas por carta DR

Querer, mas não conseguir

Se há quem desconfie das AIGP e as olhe como ameaça à propriedade privada, em Oliveira do Hospital, João Dinis viu gorada a expectativa de as integrar. É proprietário de cinco parcelas em Vila Franca da Beira. “Queria aderir e não posso, não falaram comigo”. As zonas de AIGP daquela zona estão a apenas 500 metros dos seus terrenos.

“Estou farto de perguntar, tenho ido a sessões públicas da câmara e pergunto porque não entro e o que me disseram é que não podem entrar todos”, refere João Dinis, professor do ensino básico aposentado, dirigente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e ex-candidato da CDU à autarquia de Oliveira do Hospital.

Assegura, aliás, que “há centenas de proprietários [do concelho] que gostavam de ser integrados [nas AIGP] e não foram”, o que considera “uma discriminação antidemocrática e inconstitucional na atribuição de apoios públicos”. E também porque “há apoios significativos e interessantes”. Dinis lamenta que a câmara tenha avançado “sem a prévia auscultação das freguesias e dos proprietários”. “Comigo não falaram”, garante, frisando: “É preciso participação das populações; sem isso não vamos a lado nenhum.”

Em declarações ao PÚBLICO acerca da forma como foram constituídas as AIGP em Portugal, Pedro Serra Ramos, presidente da Anefa, tinha dito que “estão a querer impor regras sem as pessoas terem direito de escolha”, o que contraria as orientações políticas e da própria DGT, que “incentiva as entidades gestoras a tomarem em mãos o processo de transformação da AIGP num processo participado”.

Confrontada pelo PÚBLICO com as críticas, a Câmara de Oliveira do Hospital, liderada por Francisco Rolo (PS), não desmente a acusação. Alega que “a iniciativa de propor a constituição de uma AIGP é do Estado, das autarquias locais, organizações de produtores florestais e agrícolas, cooperativas, associações locais, entidades gestoras de baldios e organismos de investimento colectivo”.

Questionada sobre se a câmara falou com os proprietários florestais antes de avançar para a constituição das AIGP, fonte oficial da autarquia respondeu, por escrito, que “a mobilização dos proprietários é uma fase muito exigente e complexa, não só pelo número, diversidade e interesses distintos, mas, também, por em muitos casos não se conhecerem os proprietários, ou os próprios donos desconhecerem a delimitação dos seus terrenos, dificuldades decorrentes, em grande medida, do facto de não existir cadastro na totalidade destas áreas”. Não é, porém, o caso das propriedades de João Dinis, que, admite a câmara, estão “todas cadastradas”.

Oliveira do Hospital tem oito AIGP aprovadas (5087,55 hectares). Cinco são promovidas pelo município e três pela CAULE – Associação Florestal da Beira Serra. Está agora em curso “a operação de recolha de dados sobre os prédios e baldios que se encontram em situação de cadastro diferido dentro das AIGP existentes, não estando ainda disponível de momento o número de proprietários envolvidos”. Em paralelo, estão “a proceder à elaboração das propostas de OIGP para as AIGP que são da sua responsabilidade, enquanto entidade promotora”.

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Floresta queimada em Mação. Os incêndios florestais contribuem para o agravamento da crise climática Nelson Garrido

A elaborar a proposta de OIGP também está Alvares, no concelho de Góis, distrito de Coimbra. Foi a primeira AIGP a ser a ser anunciada em Portugal, com pompa e circunstância, em Novembro de 2020, na presença do então ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes. Volvidos mais de dois anos, ainda não saiu do papel.

João Baeta Henriques, engenheiro electrotécnico, é dono de “várias parcelas, cerca de 50 hectares, em minifúndio” nesta AIGP. Em conversa com o PÚBLICO, lamentou a falta de tabelas com os valores a pagar pelos serviços dos ecossistemas para se poder ultimar a operação. “Temos as minutas dos contratos praticamente finalizadas, mas não temos as bases para os podermos assinar”, diz, adiantando que, mesmo para a manutenção, “os valores das operações florestais ainda estão a ser trabalhados para serem actualizados; os que existem são de 2016 e hoje os custos são outros”.

Ninguém contesta: o processo de implementação das AIGP em Portugal está atrasado. E pende “a guilhotina dos prazos do PRR — 2025 — em cima da cabeça”, lembra Fernando Carvalho, da Baladi.

Questionados sobre se acreditam numa execução a 100% das 70 AIGP/OIGP e das respectivas verbas até 2025, DGT e Ministério do Ambiente parecem ter ensaiado a mesma resposta a enviar ao PÚBLICO: “Acredita-se que os beneficiários dos territórios (entidades gestoras, proprietários, produtores e outros intervenientes) não quererão desperdiçar a oportunidade de ter um financiamento que está alocado a estes territórios e que é comparticipado a 100%.”