Fúria e Democracia

A tragédia vai além da América Latina. Estamos diante de consistente crise de governabilidade, com viés global, sujeita a particularidade locais, pulsando ondas de insatisfação popular.

Os fatos ainda ardem, sendo impossível conclusões definitivas. No entanto, o 8 de janeiro de 2023 terá referencial histórico na trajetória política brasileira. Foi um domingo, um dia teoricamente de paz e descanso que acabou sequestrado pela insana violência contra os Três Poderes da República. Entre cacos e destruição, a ira popular de alguns atingiu o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. O ocorrido é inédito na História republicana do Brasil; por mais graves e sombrios os eventos do passado, jamais houve tamanho levante violento contra as instituições; nem na ditadura de Vargas nem no regime militar de 64. Ocorreu apenas agora. Por quê? Eis a pergunta que se faz pensar.

Pois bem. Sabidamente, um problema complexo não possui causa singular, sendo o somatório entrecruzado de causas e concausas que gera a complexidade da questão. Em época de muitas dúvidas e poucas respostas convincentes, exsurge, mundo afora, a evidência de que as democracias sofrem. Há uma certa desconexão de perspectivas.

Enquanto a realidade da vida ganhou velocidade e dinâmica digital, a política parece ter parado no tempo, ficando enredada em anacrônicos arranjos paroquiais, mostrando-se consistentemente incapaz de bem mediar a difusa teia de interesses sociais contemporâneos. Tal descompasso gera angústias e insatisfações perante olhos de uma cidadania global frenética e hiperativa, despida da calma e paciência das gerações passadas perante adversidades do viver. Aos poucos, as tensões latentes ganham densidade, sendo o trabalho das instituições – públicas e privadas – criar soluções eficazes com vistas à diminuição de pressões sociais potencialmente danosas.

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Trabalhos de limpeza e restauro no Congresso, depois do atáque de domingo Adriano Machado/Reuters

A demonstrar que o fenômeno febril não é exclusividade brasileira, basta destacar os fatos recentes do Peru, onde protestos políticos já somam mais de 45 mortos, sendo 18 num só dia, a incluir uma recém-nascida. Sim, trágico sob qualquer aspecto.

Aliás, a tragédia vai além da América Latina. Não custa lembrar que, em 2021, quando da invasão do Capitólio, sede do Congresso americano, houve cinco mortes e centenas de pessoas feridas. Em termos gerais, incluindo autocracias, o Global Protest Tracker, da Carnegie Endowment for International Peace, aponta que, desde 2017, mais de 130 países registraram protestos antigovernamentais, sendo que 23% dos mais significativos ocorreram nos últimos três meses. Ou seja, estamos diante de consistente crise de governabilidade, com viés global, sujeita naturalmente a particularidade locais, pulsando ondas de insatisfação popular contra os governos nacionais constituídos.

No plano democrático, o desprestígio da política soa ser elemento central da decadência institucional em muitos países. Ora, além de eleições legítimas, é necessário que os eleitos tenham ascendência moral e, assim, representatividade político-material sobre o corpo de eleitores. A confiança do cidadão está intimamente relacionada com a ética das instituições. Afinal, o inconfiável não se faz respeitar. E quando o respeito não advém de um processo natural de admiração e validação coletiva, apesar de possíveis diferenças ou divergências pessoais, pode acontecer de o conceito de autoridade ser confundido com autoritarismo para fins de imposição de uma respeitabilidade postiça, incompatível com a dignidade da democracia.

Sem cortinas, a retomada do imperativo da decência política é condição cogente para o firme restabelecimento da crença democrática. Aqui, é fundamental que as elites nacionais – econômicas e culturais – voltem a exercer o protagonismo efetivo na esfera pública, deixando o passivo papel de meros patrocinadores de players eleitorais. Como dizia Ortega y Gasset, a “nobreza é definida pelas exigências que nos faz – pelas obrigações, não pelos direitos”, ou seja, é dever da elite – dos mais preparados e capazes – assumir a intransferível responsabilidade histórica com o sucesso da democracia política. Foi isso que fizeram George Washington, Benjamin Franklin, John Adams, Thomas Jefferson, James Madison e Alexander Hamilton. É disso que nos ressentimos no presente.

Em obra clássica do pensamento político americano (The Revolt of the Elites and The Betrayal of Democracy), a inteligência superior de Christopher Lasch pontuou que “a velha disputa entre esquerda e direita extenuou sua capacidade de esclarecer assuntos e providenciar uma mapa confiável da realidade”, vindo a acrescentar que “os ideólogos da direita e da esquerda, em vez de abordar os desenvolvimentos sociais e políticos que tendem a questionar as crenças convencionais, preferem trocar acusações de fascismo e socialismo – isso apesar do fato óbvio de que nem o fascismo nem o socialismo representam a onda do futuro”; ao concluir, realça que essa “visão do passado é tão distorcida quanto à visão do que está por vir”.

Por tudo, muitos políticos e importantes instituições da política envelheceram, perderam agilidade e dinamismo, estando, assim, inaptos a bem cumprir com o processo civilizatório da contemporaneidade. Precisamos, urgentemente, de novos hábitos democráticos, de novos líderes e novos instrumentos de poder. Hora do surgir de novos Founding Fathers dispostos a assumir sua responsabilidade histórica com os desafios do presente. A essência da democracia é a liderança que se faz entender e que, por ser entendido, leva ao entendimento político. Logo, não será ateando fogo em catedrais políticas que recuperaremos a fé na democracia. Entre passageiros e infelizes dias de fúria, o ideal democrático sobreviverá. Com melhor ou pior qualidade institucional. Está, ao fim, em nossas mãos. O amanhã não será um acaso inesperado.

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