Cristiano e o destino de anticaspa do reino

Parece que, para Ronaldo, os regimes, como as pessoas, definem-se pela cilindrada dos carros que conduzem e pelo preço dos relógios.

Em conjunto, Cristiano Ronaldo e Messi são seguidos por quase mil milhões de cidadãos planetários na principal rede social do momento (528 milhões mais 414 no Instagram). Ou seja, uma em cada oito pessoas tem algum grau de consideração pelo que eles os dois pensam, dizem e fazem, com enormes benefícios para a humanidade.

Pela observação que fiz ao Instagram de cada um, concluí que Ronaldo dá um contributo tremendo para a erradicação da caspa, salvando a vida a milhares de blazers pretos e azuis-marinhos todos os anos, e que Messi está a ponto de erradicar os tamanhos de calças abaixo do 44 com o novo Messi Burger do Hard Rock Café e as batatas fritas Lays.

Messi intercala o colesterol com um único, e tímido, apelo às vacinas e uma borla à Unicef. De Ronaldo, encontrei umas bolsas de estudo que ele oferece e uma ordem: “Vote Madeira, Europe’s Leading Island Destination 2020.” Estão no direito deles. Nunca dois seres humanos se encontraram com tanto poder nas mãos. Facto.

Com muito menos seguidores, no Twitter, Donald Trump esteve perto de ser uma ameaça ao movimento de rotação da Terra. Portanto, mais vale vender uns champôs, umas bitcoins e estar quieto com o resto. Percebo. Queres ter cuidado com o que dizes a mil milhões de pessoas (ainda que, se fosse eu, pensasse duas vezes nisso das bitcoins).

Até que chegamos a Maio de 2022, e Messi anuncia aos 414 milhões de seguidores no Instagram, mais os outros milhões todos que não pescam socialmente, que aceitou ser embaixador do turismo da Arábia Saudita, o mais belo e panorâmico dos violadores de direitos humanos da lista das Nações Unidas. Reparem: de um lado, um quadradinho com umas letras discretas a dizer “As Vacinas Funcionam” numa página de Instagram, do outro, a pompa de uma viagem a Riade para a entronização como embaixador do turismo de um país que condena à morte homossexuais, livre-pensadores, defensores dos direitos das mulheres e cidadãos que contestam a expropriação das suas terras.

Um país que tem uma polícia religiosa para vigiar o modo de vestir das mulheres, que as deixa “conduzir”, mas não tirar a carta, que só lhes dá conta bancária com consentimento de um homem, e que não lhes permite casar ou viver sozinhas sem autorização. Ah, e que assassina e desmembra jornalistas em países vizinhos.

Depois de mastigada, regurgitada e voltada a mastigar toda esta problemática durante um mês e meio, à custa do Qatar (e não de Messi, curiosamente), o recém-descoberto pré-quarentão Cristiano Ronaldo decide subir um patamar, e saltar também ele da lista negra da Amnistia Internacional directamente para a lista negra da ONU. Do Qatar para o que havia de pior ainda do que o Qatar, em desafio aos mariquinhas do planeta.

Faço aqui uma interrupção para falar de dinheiro. Quando se é seguido por 400 ou 500 milhões de crentes no Instagram, a noção de dinheiro desaparece. Qualquer publicação paga de Ronaldo ou Messi vale entre um e dois milhões de euros, e faço as contas por baixo. A Nielsen, a mais respeitada analista nesta matéria, avalia em 3,4 milhões os posts de Ronaldo, e em 3 milhões os de Messi. Ainda que ele não fosse já multimilionário de outras fontes, o próprio Instagram liberta Cristiano Ronaldo para a independência absoluta. Porquê, então, o lado negro da força?

Na escolha da Arábia Saudita, tudo é catastrófico: o futebol caricatural de quarta categoria, o papel de marioneta de regime que já começou esta terça-feira (“o Al-Nassr até tem uma equipa feminina”) e, sobretudo, esta tardia e discreta, mas monstruosa, estreia como influencer social ao serviço da pior das causas. Parece que, para Ronaldo, os regimes, como as pessoas, definem-se pela cilindrada dos carros que conduzem, pelo preço dos relógios que usam, pelo luxo dos hotéis em que vivem e pelo perfume a que cheiram. No fundo, todo o seu percurso extra-futebol (lá dentro, perdoem-me, mas a média rondou o magnífico) conduziu a este último e fundamental papel: o de anticaspa do reino.

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