Porque não devemos falar da roupa de Janja da Silva

Comentários sobre figurino da nova primeira-dama do Brasil reduzem a um papel decorativo uma mulher capaz de assumir responsabilidades muito maiores

Foto
Janja da Silva Reuters/UESLEI MARCELINO

Foi no Screen Actors Guild Awards, em 2015, que a atriz Cate Blanchett reagiu à equipa de TV que filmava o seu vestido. Enquanto uma câmara acompanhava as curvas do seu corpo, ela perguntou: “Vocês fazem isso com os rapazes também?”

É claro que não faziam. Não fazem.

No mesmo ano, um grupo de atrizes iniciou a campanha #AskHerMore para lembrar aos jornalistas que cobriam Hollywood que, óbvio e ululante, uma mulher tem mais a dizer do que o nome da marca que a veste.

Já editei o suplemento de moda do maior jornal brasileiro e entendo perfeitamente o poder de comunicação da roupa. Acho até que seria bom se falássemos mais seriamente sobre o tema, que é fascinante. Sei também que faz muita diferença na carreira de um estilista, sobretudo para os independentes, que alguém célebre vista uma criação de seu atelier.

Isto posto, Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse para seu terceiro mandato como Presidente do Brasil, e não consigo entender a ansiedade em torno da roupa da primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja. A posse de um Presidente da República, sobretudo um que assume após quatro anos de retrocesso democrático, é muito mais importante e carregada de símbolos do que qualquer evento de Hollywood. Mesmo assim, e por isso mesmo, porquê tamanha ansiedade? E porque há sempre tanto machismo quando falamos de moda?

No decorrer do domingo, dia da posse, li que o fato de ter usado calças aproximou Janja de Lula. Que sua escolha de moda foi uma demonstração de força. A sério, alguém ainda acredita que uma peça tirada do guarda-roupa masculino, ou que a presença de um homem, nos dá poder? Isso certamente fez sentido quando Coco Chanel vendeu as primeiras calças de sua grife, no início do século XX, mas, em 2023… francamente.

Janja já disse que não quer ser chamada primeira-dama nem "Dona Janja", que é o tratamento formal dado às primeiras-damas no Brasil. Está disposta a ser atuante e tem todo o direito de o ser. É bom para o Brasil e para as mulheres brasileiras que a companheira do Presidente não seja mais uma versão da fórmula "bela, recatada e do lar”, para usar um termo cunhado durante o governo de Michel Temer.

Há muito a dizer sobre Janja da Silva. Foi ela quem organizou a posse, que trouxe de volta o povo e a cultura brasileira aos espaços de poder. É socióloga e tem uma longa trajetória de militância política. Declara-se feminista e tem ideias próprias sobre temas caros ao país, como questões de gênero e raça, direitos humanos, segurança alimentar e cultura.

Se sua roupa era champanhe, bege ou dourada (cada texto que li citava uma cor diferente) não nos diz muito sobre ela, muito menos sobre as responsabilidades que vai assumir. Se a decisão de usar calças foi uma reação ao conservadorismo (o Senado brasileiro liberou o uso de calças compridas para mulheres em seu plenário apenas em 1997), que tempos são esses em que uma mulher ainda precisa se expressar em silêncio?

Em direção contrária, o máximo que li sobre as roupas de Lula e Alckmin foi que o Presidente e seu vice trocaram as cores das gravatas. Lula escolheu azul e Alckmin, vermelho. Como Lula não usou vermelho em sua primeira posse, há 20 anos, não há nenhuma novidade. Aliás, quem fez o terno do Presidente? Não sabemos.

“Ah, a roupa dos homens é sem graça, não é assunto”, me dizem. Nós, mulheres, não somos entretenimento, não estamos aqui para acharem graça. Há machismo quando deixamos os assuntos "sérios" para os homens e tratamos as mulheres como adornos. Há machismo quando somos narradas e avaliadas pela aparência e eles, não. Há machismo quando a sociedade aprova que nossa expressão seja pela roupa, mas rejeita quando assumimos protagonismo com a nossa própria voz (Janja já tem sido alvo desse tipo de crítica).

Janja da Silva é, ao lado de Ruth Cardoso e de Nair de Teffé, uma das mulheres mais interessantes a ser primeira-dama do Brasil. Tem força, inclusive, para iniciar voo político próprio e exercer um protagonismo infelizmente ainda raro no Brasil. O que falta é a tratarmos como uma mulher de seu tempo e fazermos outras perguntas.

A autora escreve em português do Brasil.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários