Boicotar ou não boicotar o Qatar? Eis a questão

As minhas dúvidas em relação ao boicote, é que se fossemos a boicotar o Qatar, teríamos de boicotar metade do planeta, e isso cavaria o fosso ainda mais fundo entre democracias e autocracias.

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O 11 inicial alemão, no início da partida em que perdeu com o Japão, no jogo de estreia no Mundia 2022 EPA/Friedemann Vogel

Há anos que luto com afinco pelos direitos humanos, quer no exercício da medicina essa luta é mais necessária, quer escrevendo ou falando dezenas e dezenas de vezes sobre a importância de colocarmos o humanitarismo à frente de tudo, e ainda assim tenho dúvidas sobre este comboio encarrilado em vontades de boicotar o Qatar.

É indubitável que o Qatar é um estado autocrático, que comete, por decreto, violações aberrantes dos direitos humanos, sob a capa de questões culturais e religiosas dogmáticas e intransigentes. O que é ainda mais grave, e correndo o risco de estar a simplificar questões altamente complexas, é que o que se passa no Qatar é extensível a todos os países da península arábica, com a Arábia Saudita à cabeça, acompanhada dos Emirados Árabes Unidos (Dubai, Abu Dhabi, etc.), Barém, Kuwait, Omã, sobrando só o Iémen que está em guerra, em parte alimentada pelos países nomeados.

São todos árabes, todos ultraconservadores na sua interpretação do Islão sunita, quase todos países imensamente abastados pelos famigerados combustíveis fósseis: petróleo e gás natural. São todos responsáveis morais e patrocinadores do extremismo islâmico ao alimentar grupos como Al-Qaida e Daesh, e também intimamente responsáveis nas guerras que fazem por procuração contra o Islão Xiita, (dominado pelo Irão) na Síria, no Iraque, e no Iémen.

Eu estive no Iémen onde assisti aos aviões sauditas a bombardear a população, não preciso que me expliquem a malvadez destes regimes, e estive na Síria e no Iraque onde me questionei porque é que o apoio às facções sunitas das guerras não eram acompanhadas pelo acolhimento de refugiados, e os meus companheiros iraquianos deram-me a resposta: “Eles, não nos recebem porque não querem diminuir a quantidade/percentagem de sunitas nos teatros de guerra...” Ou seja, tratam-nos como lixo, e apenas os usam para os jogos de poder Sunita-Xiita, que é resumidamente, Arábia Saudita-Irão.

Em 2016, quando Trump é eleito, a primeira visita que faz ao estrangeiro é à Arábia Saudita. Claro que Trump é Trump, mas isto serve para mostrar que o Ocidente, ou seja, todos nós, nunca estivemos muito preocupados com os direitos humanos, ao fazer negócios, ao fazer turismo, e ao lá fazer todo o tipo de eventos, fingindo não querer saber do que por lá se passa, quando nos dá jeito. Haverá por aí gente que alegremente visitou o Dubai ou quer visitar, e agora apregoa o boicote do Qatar? Isto não é whataboutismo. Isto é coerência, proporcionalidade e priorização.

As minhas dúvidas em relação ao boicote recuam não só a uma história muito recente de eventos desportivos: mundial na Rússia em 2018, Jogos Olímpicos de Inverno na China, este ano, e por exemplo, as provas de Fórmula 1 todos os anos em Abu Dhabi. Tendo em conta que há um equilíbrio no mundo entre autocracias e democracias, vamos boicotar todos os países que não respeitam deliberadamente os direitos humanos? Vamos cortar relações com a China pelo alegado genocídio do Uigures sabendo que é essencial que se aposte nesta diplomacia para enfraquecer os apoios à Rússia na invasão à Ucrânia?

Eu sou totalmente a favor de todas as formas de protesto, e também já dei por mim a pensar o quão bonito teria sido se Portugal (Conan Osiris) não tivesse ido ao festival da Eurovisão em Israel por protesto, ou se Portugal ficasse agora em terra, em vez de voar para o Qatar. Uma parte de mim regozijava, se isso acontecesse.

As minhas dúvidas em relação ao boicote, é que se fossemos a boicotar o Qatar, teríamos de boicotar metade do planeta, e isso cavaria o fosso ainda mais fundo entre democracias e autocracias. Não nos podemos nunca esquecer da magia que nasce da conexão entre os povos. Olhos nos olhos, muitas vezes percebemos a facilidade com que as diferenças se dissipam nas semelhanças, e o desporto com todos os seus defeitos tem esse condão, de unir povos que noutras circunstâncias não se tocariam. E sem toque, sem conexão, sem partilharmos os afectos e as emoções nunca nos aproximaremos, nunca seremos um todo, nunca lutaremos pelo bem comum.

Tenho mais perguntas do que respostas, e apoio com toda a força, todos os protestos, todos os apelos ao boicote (mesmo não concordando), e todas as estratégias que façam com que o regime qatari e seus vizinhos sintam que há todo um mundo que não admite que as mulheres não tenham livre-arbítrio, que a sexualidade não seja apenas uma escolha do próprio, e que a liberdade de expressão é mais valiosa do que o petróleo. Sou a favor de que se faça barulho ao ponto de eles ouvirem com clareza as nossas mensagens de humanismo.

A FIFA proibiu a braçadeira com as cores do arco-íris, mas os jogadores da Alemanha formaram fileiras a tapar a boca com a mão, num gesto poderosíssimo. Os ingleses e outros ajoelharam-se pelos direitos humanos, e aguardo com muita expectativa outras formas de protesto tão ou mais dolorosas que o boicote, que inflamam a discussão a nível da sociedade civil e que depois transbordam para a política e diplomacia, onde ela tem de acontecer.

Sendo assim permite-se que o desporto contribua para diluir as diferenças, e fazer com que as pessoas se toquem, e nos relembrem da importância de salvaguardar a humanidade que temos em comum.

Pode parecer paradoxal, mas sou muito a favor de todos os protestos, mas do boicote, não.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor da Médicos Sem Fronteiras

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