Três alternativas para não comprar nada até ao Natal

Tornei-me alguém que tem uma espécie de guarda-roupa cápsula, reorganizando todas as peças de roupa e assumindo, com orgulho, a repetição dos conjuntos com os quais me sinto bem.

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"O factor preço, conveniência e design, podem interferir na decisão de escapar à fast fashion" Reuters/Arquivo

Há dias, fui ao Chiado, em Lisboa, para apresentar os nomeados de um prémio. O contexto e os motivos não importam, interessa apenas saber que cheguei mais cedo e aproveitei para visitar uma das minhas lojas preferidas de fast fashion. Havia intenção, confesso, porque preciso de umas calças pretas de corte masculino, numa fazenda suave e maleável, iguais a umas que herdei do meu pai, mandei apertar e usei até rasgar.

Gosto destas calças baggy que marcam a cintura e nos definem, especialmente se forem realmente masculinas e ainda mais, especialmente, se tiverem uma história associada. Estava nos meus vintes quando olhei para umas calças que o meu pai já não vestia e decidi adaptá-las para mim. Apertei a cintura, subi as bainhas e usei-as para sempre, porque eram únicas e muito confortáveis. Combinava-as quase sempre com uma T-shirt branca, um cardigan ou um blusão de cabedal. Quero-as de volta e estava com esperança de entrar nessa loja — numa das raras vezes em, nos últimos anos, entrei deliberadamente numa loja de fast fashion — e encontrar umas calças pretas de fazenda.

Tal não só não aconteceu, como encontrei umas calças que nada têm a ver com as de corte recto masculinas mas que são, também, umas das que me apaixonam.

Perdoamos tudo à roupa pela qual nos apaixonamos?

Há anos tive umas leggings de cintura descaída em pele sintética que usei até se rasgarem. E eis que, enquanto procurava as outras calças, que não encontrei, descobri, num expositor de promoções, umas leggings pretas pele sintética e cintura subida, como as que havia tido mas ainda mais confortáveis, porque, queiramos ou não, cintura subida pode ser muito ‘mãe’ mas é mais adaptável ao corpo do que a cintura descaída.

Se as comprei? Sim. Quebrei a regra de não comprar porque são das que vou usar até rasgar.

Esse é o verbo. Já lá vamos.

Encontrei também uma camisa branca — que em tempos tive e que também já se desfez — e comprei. Se podemos negar as nossas paixões? Podemos mas também podemos estar conscientes das escolhas que fazemos e comprar apenas aquilo de que realmente precisamos. Substituir peças está incluído nesta categoria de compra.

No dia seguinte estava a ler as notícias sobre moda quando descobri uma ligação directa, embora muito escondida, entre a produção de petróleo russo e a roupa que vestimos. As marcas de fast fashion recorrem a fabricantes de tecidos que os produzem com petróleo made in Russia. Autch.

A nossa roupa é feita de plástico

Se pensarmos, quase toda a roupa que vestimos é plástico. Talvez esta seja uma frase muito forte mas é um facto que a maior percentagem das peças de roupa que hoje encontramos na loja pode ter uma percentagem de fibras sintéticas na sua composição.

É muito cansativo ir às compras e ler todas as etiquetas, para perceber a composição dos produtos. Se o fizermos, vamos perceber que quase todas as peças de roupa têm uma percentagem, maior ou menor, de fibras sintéticas. As fibras sintéticas são produzidas a partir da sintetização do petróleo em diversos tipos de fibras têxteis, o que equivale a dizer que são plástico. Foi esta a razão que me fez parar de comprar, ou tentar, diminuindo radicalmente o número de peças de roupa que compro e as que tenho no roupeiro. Tornei-me alguém que tem uma espécie de guarda-roupa cápsula, reorganizando todas as peças de roupa e assumindo, com orgulho, a repetição dos conjuntos com os quais me sinto bem. Também encontrei soluções de roupa em segunda mão e comecei a participar em mercados de trocas.

Rasganço apaixonado

Ao fim de uma semana, voltei ao lugar do crime, desta vez para a apresentação dos prémios. Decidi usar as minhas calças preferidas e senti-me feliz com a minha escolha. Enquanto moderava um debate, durante o evento de atribuição de prémios, não pude deixar de reparar nuns riscos na perna direita das calças. Atrapalhada por não poder desviar a atenção do que estava a acontecer e inquieta por não perceber, de soslaio, o que tinham as calças, perdi parte da concentração e fiquei a pensar se aquilo poderia ser da minha responsabilidade. Tinha usado as calças duas vezes e queria, no meu íntimo, não sentir culpa por uma compra que, na sua essência, tem tudo para correr mal: fast fashion, baixo preço, fibra sintética. O que poderia eu esperar?

No intervalo das sessões, e antes da cerimónia dos prémios, voltei à loja, mostrei o que tinha acontecido e não hesitaram em trocar ou devolver o dinheiro. Hesitei… Sabem aquelas relações que vocês querem muito que resultem? Conhecem uma pessoa e querem que seja a pessoa certa mesmo quando percebem que não o é? Ignoram os sinais de alarme, todos, porque querem muito que aquela relação funcione. Só que não funciona. Já aconteceu a todos.

É essa a história destas leggins. Eu a querer muito que funcione e tudo a mostrar-me que tem tudo para correr mal. Arrisquei e troquei por outro par. Usei quatro vezes, já aguentaram mais uma utilização, e percebi que esgaçaram completamente numa das costuras. Observei as outras costuras e ia acontecer-lhes o mesmo. A ideia de usar até rasgar afinal estava certa. Eu não imaginei que acontecesse tão depressa.

Poderia ter corrido bem porque, afinal, as fibras sintéticas têm uma característica particular: demoram mais tempo a degradar-se do que as fibras naturais. Contudo, também têm maior tendência para que o produto final não tenha a mesma qualidade de um produto produzido com fibras naturais. E, desta vez, eu não estava a ser parte da solução. Eu transformei-me no problema porque além de comprar, dando a indicação à fast fashion que, afinal, os seus produtos são apetecíveis, contribui para aumentar a pilha de roupa descartada, para a qual já não temos grande solução.

Descartar o amor

Os dados são de 2019 e indicam que os portugueses deitam ao lixo 200 mil toneladas de roupa. Na Europa e Estados Unidos os números atingem os milhões de toneladas, dos quais apenas uma pequena parte é reciclada.

O reaproveitamento deste descarte têxtil ainda não é uma realidade. Sabe-se que podem ser usados em revestimentos e pavimentos, diminuindo drasticamente a pegada carbónica da indústria têxtil, mas nada acontece.

Vestirmo-nos de plástico não é solução. Devolvi a peça, sabendo que acabará num monte qualquer de peças de roupa com defeito, cujo custo será imputado ao fornecedor, o qual provavelmente vai descontar ou na produção, ou na matéria-prima. Seja como for, a cadeia de valor e o ciclo de vida destes produtos têm um enorme impacto social e ambiental, sem afectar, ao de leve, a marca que os representa: fast fashion.

Neste processo, senti-me quase sempre entre a espada e a parede, segura de que me faziam falta umas calças como aquelas, que usaria para sempre, a culpa de saber que são feitas de plástico e a consciência das condições (muitas vezes) desumanas da sua produção. Depois fiquei a saber que estas condições ainda estão ligadas ao petróleo russo, através das ligações que o relatório Dressed to Kill, da Fundação Chaning Markets, descobriu entre cadeias de produção das maiores marcas de moda e os revendedores de fibras têxteis que usam petróleo russo para produzir as fibras.

Hoje, 70% da roupa produzida é de plástico, como por exemplo o poliéster ou o náilon. Apesar das sanções impostas aos russos, a fast fashion continua a alimentar a economia do país. Estarão estas calças a financiar uma guerra?

Comprar ou comprar, essa é a questão

A nossa relação com a moda e o consumo assenta num dilema moral de difícil solução. Se, por um lado, precisamos andar vestidos, por outro há opções suficientes para evitar a fast fashion. Contudo, o factor preço, conveniência e design, podem interferir nessa decisão de escapar à fast fashion.

Há muitas pessoas, nas quais me incluo, para quem o factor preço condiciona muitas decisões. Se é verdade que menos é mais — e realmente precisamos de menos roupa do que pensamos —, se também é um facto que a roupa pode ser um investimento — comprando menos e comprando melhor —, também é verdade que, se o preço da fast fashion é demasiado baixo, também não é mentira que os preços da moda sustentável são altos, por força de um mercado estruturado em design de tendências que não considera o ciclo de vida do produto; matérias-primas químicas; mão-de-obra barata e um modelo de negócio baseado numa elevada rotatividade, grande volume de vendas e preços baixos. Produzir de forma consciente e comercializar produtos sustentáveis não é caro. Os restantes é que são demasiado baratos, com um impacto social e ambiental do qual teimamos em não falar, não educar e desconsiderando o que pode isto significar no futuro. É por isto que acredito que a solução é não comprar.

Como não comprar, mantendo o estilo? Três alternativas às compras.

É um processo, uma forma de vida, aprendendo a redescobrir o nosso guarda-roupa, a reinventar combinações e a reestruturar peças de roupa. São vestidos que passam a saias, saias transformadas em tops e muitas outras opções que a imaginação permitir. Além disso, a segunda mão começa a ser uma opção, também em Portugal. Há cada vez mais lojas online de venda de roupa que já teve uma outra vida, ao mesmo tempo que vai diminuindo o preconceito associado à roupa usada.

Se mudarmos as palavras, mudamos mentalidades. As hashtags estão por aí e fazem parte da nossa vida. Gosto particularmente da #preloved que significa que aquela peça de roupa já foi amada antes. Se atribuirmos significado às peças de roupa que usamos, transformamos aquela relação que queremos muito que seja mas que sabemos que não vai ser, numa relação amorosa.

E não há nada mais forte do que o amor

Ao longo da vida fui tendo várias peças pelas quais me enamorei. Lembro-me de um par de sapatos que adorava, ao qual, num tom jocoso, as minhas amigas chamavam os ‘sapatos da redoma’, porque eu não admitia que me pisassem e era muito cuidadosa quando os usava. Morreram de velhos e lembro-me deles como se os tivesse usado ontem.

Em semana de Black Friday, não comprar é uma tomada de posição. Pode ter um impacto muito pequeno nas grandes marcas mas tem certamente, grande impacto individual. Significa um compromisso que assumimos connosco. E esse é o maior de todos os compromissos, que honramos porque queremos ser autênticos, marcar a diferença e fazer a diferença. Comecemos assim, escolhendo não comprar.

A sustentabilidade começa sempre com a opção de recusar. Podemos começar por recusar ser influenciados porque o segredo de uma boa relação com a roupa começa em nós, sabendo o que gostamos e o que não gostamos para assim, ignorar tendências e criar a nossa própria #trend que é a pura representação do nosso estilo.

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