Faço birras quando tenho febre

Posso contar-te, em primeira mão, o que passa pela cabeça de quem faz uma birra. Explicar-te o que as crianças não conseguem traduzir por palavras.

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@designer.sandraf

Ana,

Sabes aquelas pessoas que acreditam que em vidas anteriores foram a Cleópatra ou o Napoleão? Pois, para mim a febre funciona como uma máquina do tempo. Quando chega aos 37,5ºC já estou a chamar pela minha mummy, e à medida que sobe vou recuando até me transformar numa criança pequena. Uma criança birrenta. Foi exactamente o que fui há muitos, muitos anos.

Nestas crises, maltrato a pessoa que tem a generosidade de tratar de mim. Digo que não gosto da comida que faz o favor de me trazer, culpo-a por me sentir tão mal, tapo os ouvidos com as mãos, num gesto absolutamente infantil, quando me dizem para ficar na cama, protesto contra o sabor dos xaropes, e choro desalmadamente sentindo-me a mais infeliz das criaturas.

Depois a febre desce, e volto à normalidade. E tenho vergonha das figuras que fiz.

Aconteceu tudo assim quando tive covid, mas, de volta à idade da razão, decidi dar uma utilidade à minha regressão. Ana, isto significa que posso contar-te, em primeira mão, o que passa pela cabeça de quem faz uma birra. Explicar-te o que as crianças não conseguem traduzir por palavras.

Perante um acontecimento que os desorienta muito (e alguns desorientam-se mais facilmente do que outros), precisam desesperadamente da mãe ou do pai. Não é fita. Sentem-se a afogar, e voltam-se para o nadador-salvador mais fiável que conhecem.

Mas, tal como o náufrago, também a criança em pânico – e invadida por um profundo alívio — abraça-se àquele que vem em seu auxílio, arrastando-o consigo para o fundo. O que é uma loucura difícil de entender tanto pelo que se afoga, como pelo que o vem socorrer, mas é preciso perceber que os neurónios não estão a funcionar. Funciona só a emoção.

Os pais são o saco de boxe deste paradoxo, porque mal a criança se sente segura, em lugar de agradecer, solta uma vaga de raiva directamente proporcional ao susto que apanhou: “Como é que é possível que não tenham sido capazes de evitar aquele sofrimento, aquela contrariedade, aquela frustração? Então não tinham superpoderes?” Sente-se traída, insegura, zangada.

Depois cai em si. E não sabe que sentido dar aquilo que fez contra aqueles de quem é mais dependente.

Se conseguir, pede desculpa.

Ana, achas que é isto?


Querida Mãe,

Parece-me uma óptima explicação para uma birra, tantas vezes interpretada como um capricho guiado pela razão: A criança faz aquilo porque quer. Não se porta melhor porque não quer. E o que fazemos perante uma criança que não quer? Tentamos motivá-la a querer, oferecendo lhe recompensas ou castigando-a para que queira evitar o castigo.

O problema é que isto só funcionaria se o problema fosse mesmo uma questão de vontade. Só que na grande maioria dos casos, para não dizer todos, não é!

A birra surge quando as circunstâncias ou as exigências superaram a capacidade da criança (ou do adulto, no caso da mãe, o adulto com febre), e, por isso, naquele momento, não consegue fazer de outra maneira.

Mas se a razão deixa de funcionar, o que é que a volta a ligar?

Calma. Respiração. Distração. Depois haverá tempo para encontrar soluções ou para lhes damos os sermões de que tanto gostamos — ajuda pensar que se queremos realmente que nos oiçam e interiorizem o que lhes temos para dizer, então é melhor esperarmos que voltem a ter capacidade de nos ouvir.

Melhoras.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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