Temos de falar sobre Cristiano Ronaldo

Se é verdade que Cristiano Ronaldo foi um dos melhores jogadores de todos os tempos, nada de perto se poderá dizer sobre a pessoa; para constituição de um herói nacional, os portugueses e as portuguesas deveriam exigir mais. Comecemos por ele.

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EPA/Andrew Yates

Dados os episódios recentes que tem protagonizado e a respetiva preponderância mediático-social, creio que se impõe falarmos, abertamente, sobre o papel que Cristiano Ronaldo ocupa no nosso imaginário colectivo. Estando CR7 elevado a maior ícone nacional vivo, a discussão também é sobre nós.

Graças aos feitos históricos do jogador, a pessoa atingiu o nível lendário, com tudo o que isso implica. Agora no patamar da mitologia contemporânea (parece antagónico mas o desporto e a guerra são meios de excelência para tal), Cristiano Ronaldo goza, há décadas, de uma certa impunidade ética, moral e profissional. Enquanto ídolo de milhões de crianças, jovens e menos jovens, homens e mulheres, e como símbolo nacional, o endeusado estatuto levanta questões às quais não temos querido responder.

Trata-se, de facto, de uma conversa difícil. Dada a ligação emocional, muitas pessoas recusar-se-ão a repensar e reposicionar Cristiano Ronaldo. A dificuldade na análise está precisamente pelas amarras a que mitos e lendas forçam. E é suposto ser assim: até pode haver um fundo de verdade no mito, mas, ao assumir, com o tempo, um papel social agregador, a adesão à realidade pouco importa. Na maior parte das vezes nem nos apercebemos – é cultural, transversal e (quase) inescapável: de heróis do mar a melhores produtores de vinho europeu.

As mesmas premissas infectaram a nossa visão de CR7: um dos melhores jogadores de todos os tempos tem, naturalmente, de ser boa pessoa (efeito de Halo), até porque se não for, como podemos lidar com o facto de ser ícone nacional? Como a primeira premissa é muito evidente, escolhe-se desvalorizar a segunda, por mais exemplos que haja.

Contudo, o mais curioso é que foi preciso Cristiano Ronaldo deixar de ser decisivo (ou até um estorvo) dentro de campo para que se questionasse o estatuto: agora é muito mais fácil criticar a pessoa, à boleia do jogador. Veja-se, por exemplo, como muitos comentadores desportivos não tiveram pejo em classificar de inapropriado o comportamento de CR7 quando se recusou a treinar durante toda a pré-época, exigindo sair do Manchester United. As razões para tal não são de somenos: Ronaldo, aos 37 anos, acha-se demasiado grande para disputar uma competição europeia de segunda linha. Importa, também, não esquecer que ainda estão pendentes as pré-anunciadas explicações que Ronaldo prometeu dar depois do fecho do mercado.

Ao passo que tem sido notória a crescente abertura para a crítica livre ao desportista Cristiano, o mesmo não se pode dizer para o comportamento que tem vindo a ter: Esbofetear a mão com que uma criança segurava o telemóvel à saída para o túnel; desresponsabilização sobre as regras de confinamento e vontade de jogar enquanto positivo à covid-19 por “sentir-se bem”; protestos desmedidos quando substituído; recolha aos balneários antes do fim do jogo por saber que não vai entrar; performances raivosas de arremesso da braçadeira da selecção nacional quando insatisfeito mas, e em sentido contrário, auto-convocação para o Euro 2024 (será inédito?)…

Se desportivamente há gostos para tudo, estas atitudes devem exigir escrutínio ético – que já acontece ao futebolista comum e que falha perante os super-atletas. Acontece que o segundo é seguido, admirado e imitado por milhões de pessoas, com o respectivo comportamento a ser normalizado e legitimado – não deveriam ser esses os valores a transmitir aos outros.

Desembaraçarmo-nos da nossa relação, enquanto sociedade, com Cristiano Ronaldo não é fácil: infelizmente, o que interessa é que foi um grande jogador. Os mais acérrimos defensores agarrar-se-ão a tudo; um exemplo comum é a solidariedade de CR7, como quando doou 3,4 milhões de euros para a inauguração de uma ala no Hospital Santa Maria. É uma atitude louvável. Mas estará também presente no pensamento a admissão de culpa e consequente condenação por evasão fiscal, em Espanha, num valor quatro vezes superior?

A resposta é fácil de inferir: não; até porque só agora entramos no zénite mitológico de Cristiano Ronaldo – o Caso Mayorga, Para um argumentário coerente, importa ressalvar que interessam menos os timings de Kathryn Mayorga e mais as acções do ídolo nacional: é factual que CR7 pagou, em 2010, cerca de 318 mil euros para a norte-americana se remeter ao silêncio, abandonando as acusações de violação. A prática comum chutar para canto com o argumento de que nada foi provado (e com esperança de que Ronaldo ainda consiga elevar-se para fazer golo), mas isso não nos impede de assumir um posicionamento ético.

Curiosamente, sobre este tema pronunciou-se um outro ídolo nacional, Ricardo Araújo Pereira, a propósito do movimento #MeToo nacional, em Maio de 2021. Concluiu RAP, na primeira emissão desse mês do (na altura) Governo Sombra, sobre os vários títulos de jornais que noticiavam a chegada do #MeToo a Portugal: “A sensação que eu tenho é que há três anos já tinha chegado… as pessoas não gostaram foi do nome; mas em Outubro de 2018 o Público dizia ‘Como Ronaldo entrou no furacão #MeToo’. […] Não estou a dizer que Ronaldo é culpado, não me interpretem mal, o que estou a dizer é que o texto da revista Der Spiegel, não sendo uma prova definitiva, era bastante preocupante.”

Muita gente, eu incluído, cresceu a adorar o que Cristiano Ronaldo fazia dentro de campo. Uma ligação emocional muito forte foi forjada. CR7 conquistou imensos troféus, bateu recordes – é um marco incontornável no futebol mundial.

O único que beliscou o afinco com que trabalhou durante anos e anos para estar sempre no topo foi o próprio; e quando arredado dos campos onde brilhara vemos que o que sobra é mais um homem que teima em sair de cena. E verdade seja dita: Cristiano não está sozinho. Maradona, Garrincha ou até o recém-eleito Bola de Ouro, Benzema, tiveram atitudes extra futebol muito pouco recomendáveis (e até judicialmente puníveis).

Viciado nos holofotes, parece que, se é para sair, Ronaldo sairá com estrondo e má cara. Ignoremos o semblante, aproveitemos o barulho. Se é verdade que Cristiano Ronaldo foi um dos melhores jogadores de todos os tempos, nada de perto se poderá dizer sobre a pessoa; para constituição de um herói nacional, os portugueses e as portuguesas deveriam exigir mais. Comecemos por ele.

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