On e offline: um tsunami chamado racismo

O número de queixas está ainda longe de representar a realidade do racismo no país. O quadro legal precisa de mudar.

O número de queixas por discriminação étnico-racial tem vindo a crescer nos últimos anos. Se, até 2015, a média anual não ultrapassava as 76 queixas, a partir de então assiste-se a um aumento substancial e, em 2021, último ano para o qual temos dados, foram apresentadas 408 queixas. Na leitura destes números é preciso ter, pelos menos, três coisas em mente.

1. Que o número de queixas está ainda longe de representar a realidade do racismo no país. Portugal está entre os três países da UE onde menos são apresentadas queixas por discriminação às autoridades competentes por pessoas negras (9% face à média de 16%, em 2018) e Roma/Ciganas (5% face à média de 12%, em 2016).

Muitas vezes, as vítimas não apresentam queixa por não acreditarem que possam obter justiça; porque é difícil fazer prova e porque, como nos mostra o trabalho O Estado do Racismo em Portugal, é muito restrito o entendimento institucional sobre o que é incitamento à violência, ódio, discriminação e intencionalidade (dolo).

Aliás, se olharmos para a “peneira” da justiça no tratamento do racismo, comparando as médias anuais de queixas apresentadas (181), processos de contraordenação instituídos (32) e condenações (3), ou a taxa de arquivamento (80%), cedo se percebe a inoperância do sistema e o porquê de as vítimas tenderem a não confiar nas instituições de justiça.

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Como há muito coletivos como o SOS Racismo têm vindo a reivindicar, o quadro legal precisa de mudar. Tratado como uma “infração administrativa”, e não como uma questão penal, o sancionamento do racismo limita-se à coima ou admoestação, a não ser em casos extremos de grupos organizados cujas mensagens veiculadas possam ser tipificadas como “discurso de ódio” ou enquanto agravante de um outro crime. Como se vê, é muito difícil sancionar legalmente a discriminação étnico-racial.

Além do mais, a sua não configuração enquanto “crime público”, à semelhança do que acontece com a violência doméstica, e tal como recomendado por agências internacionais como a ENAR, reduz a capacidade de dissuasão dos mecanismos sancionatórios, do apoio às vítimas, mas também do significado político e social do problema.

2. O número de queixas tem vindo a aumentar porque tem aumentado a pressão dos movimentos Negro, Roma/Cigano e Antirracista, fazendo avançar o debate e disputando o entendimento sobre o racismo e suas “camuflagens” na sociedade portuguesa. Por outro lado, as alterações legais introduzidas em 2017 (Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto) criaram condições para uma maior eficácia da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), embora esta continue a não ser um organismo independente, dotada de autonomia orçamental, estrutura administrativa e técnica própria, e a sua Comissão Permanente seja desproporcionalmente constituída por entidades tuteladas pelo Estado, por comparação ao peso das organizações da sociedade civil.

3. O aumento do número de queixas diz-nos mais sobre a crescente visibilidade das expressões do racismo do que sobre o “peso real” do mesmo. Com isto não pretendo retirar importância à dimensão da visibilidade, mas antes acautelar que daí se conclua que “antes havia menos racismo”, como se este fosse estranho à sociedade portuguesa. Em 2020, de um total de 655 queixas apresentadas, 65% reportavam a situações de discriminação ocorridas nos meios de comunicação social e na internet. A CICDR classificou estas cifras como “atípicas” e decorrentes de um contexto particular em que alguns casos de discriminação obtiveram ampla mediatização, levando a que surgissem várias denúncias sobre um mesmo episódio.

O estilo assético e acrítico do relatório da Comissão com maior responsabilidade no combate ao racismo no país reduz o aumento a um problema técnico e deixa na sombra do relatório o que de substancial está a acontecer. Afinal de contas, assistimos a um “tsunami” de discurso discriminatório nos média e, em particular, nas redes sociais durante a pandemia, devido, por um lado, ao quadro de confinamento, que fez com que as interações e sociabilidades acontecessem maioritariamente online e, por outro, porque passámos a ter na Assembleia da República um partido que se alimenta desse mesmo discurso, seguindo a receita que as forças políticas de extrema-direita têm vindo a utilizar noutras partes do mundo.

O recém-publicado relatório “Racismo e Xenofobia em Portugal: a normalização dos discursos de ódio no espaço público da internet” deixa-nos um retrato do racismo online. Esse trabalho e outros mostram como muito do racismo online reporta a discursos explicitamente discriminatórios e de incitamento à violência, mas também a formas mais e menos veladas de exclusão da pertença ao tecido nacional, de criminalização e atribuição de uma suposta “imoralidade” endémica a essas comunidades, assim como discursos que procuram negar a existência do racismo ou acenar com a bandeira do “racismo reverso”, deslegitimando as reivindicações por maior igualdade étnico-racial.

A ideia de um Observatório independente e separado das questões da imigração não é nova e consta do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025, mas ainda não viu a luz do dia, nem sabemos que perfil terá. Aguardemos, impacientemente.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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