PS queria apagar registo de perguntas incómodas. Chega e IL pedem demissão da ministra

Ana Abrunhosa recusou responder a perguntas sobre o acesso a fundos públicos de duas empresas do marido alegando que já deu todas as explicações sobre o tema. Perante uma intervenção do liberal Carlos Guimarães Pinto, a ministra emocionou-se. PS admite “aprimorar” a lei.

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A ministra Ana Abrunhosa foi ao Parlamento responder a questões dos deputados TIAGO PETINGA/LUSA

A audição parlamentar era sobre o estado do ordenamento do território a pedido do PSD, mas a ministra Ana Abrunhosa acabou por ser questionada com insistência sobre o facto de duas empresas do marido terem tido acesso a fundos públicos — algo legal mas eticamente questionável. Os deputados do Chega e da Iniciativa Liberal chegaram mesmo a pedir a demissão da ministra da Coesão Territorial e uma deputada do PS até quis que as perguntas da IL fossem apagadas da gravação e da acta.

Perante a pressão, Ana Abrunhosa chegou mesmo a emocionar-se durante a audição depois de o liberal Carlos Guimarães Pinto ter vincado, várias vezes, acreditar que a ministra “é uma pessoa séria” e “lamentar” que o marido não tenha, como empresário, as mesmas condições que os restantes empresários por ser casado com uma ministra - mas neste momento há que optar entre manter o cargo se as empresas devolverem o dinheiro e demitir-se.

Bruno Nunes, do Chega, afirmou que Ana Abrunhosa não terá condições para se manter no cargo e Carlos Guimarães Pinto, da IL, colocou a ministra perante duas soluções: “Para mostrar que segue as regras da transparência, só existem soluções no fim do dia de hoje: ou as empresas do seu marido devolvem o dinheiro que receberam ou a senhora demite-se.”

O deputado liberal lembrara que, apesar de não ter competência directa nas decisões que levaram à aprovação de projectos e verbas, a ministra “tem acesso privilegiado” a informação sobre fundos e programas. “É uma chatice, por ser marido de uma ministra, não poder aceder a fundos? É”, ironizou Carlos Guimarães Pinto.

Apesar do cerco, Ana Abrunhosa não falou sobre o assunto das empresas do marido, replicando já ter respondido às questões. E em seu socorro veio a deputada socialista Isabel Guerreiro, que, admitindo algum desconhecimento sobre as regras destas reuniões, defendeu que os deputados estavam a fazer perguntas sobre temas que “não estavam na ordem de trabalhos” e por isso estavam impedidos de falar sobre outras questões.

“Não posso vir para aqui falar sobre o café que tomei ontem”, afirmou, porque a audição “é sobre um ponto específico pedido pelo PSD”. Isabel Guerreiro, deputada do PS eleita pelo círculo de Faro, pediu mesmo que a parte das perguntas da IL à ministra seja “retirada da gravação” de vídeo e “não conste da acta” da reunião. A presidente da comissão, a social-democrata Isaura Morais, nem sequer respondeu ao pedido da deputada socialista. As audições são sempre gravadas pelos serviços do Canal Parlamento e emitidas em directo.

“Nada a declarar”, repetiu sucessivamente Ana Abrunhosa

Já na segunda audição da ministra, que era regimental e, por isso, de agenda livre para que a ministra fosse questionada sobre tudo o que se passa no ministério, os mesmos deputados voltaram a insistir no assunto com Ana Abrunhosa e criticaram também o pedido de apagamento das imagens. A presidente da Comissão de Administração Pública, Ordenamento do Território e Poder Local, a social-democrata Isaura Morais, afirmou que a questão das imagens e da acta “será tratada numa reunião de coordenadores” da comissão.

“Se depender da minha opinião, nada do que se disse será apagado. Penso que não há necessidade disso; ninguém ganha com isso. O senhor deputado exerceu a sua opinião como eu tenho a minha. Estamos em democracia; temos as nossas ideias e no fim do dia é com a nossa almofada que fazemos contas”, afirmou Ana Abrunhosa. Ficou em silêncio durante alguns segundos. E foi quando se percebeu que estava de lágrimas nos olhos. “Sou uma chorona”, disse, sorrindo. “Eu sei que as críticas são feitas com amizade e não com malícia.”

Carlos Guimarães Pinto elogiou a “dignidade” da ministra sobre a questão da gravação — clareza que a presidente da comissão não tivera. “Acredito que não esteja a ser um dia fácil para si. Espero que a questão seja resolvida até ao fim do dia porque gostava muito de a voltar a ter aqui.”

Antes desta reacção da ministra, o deputado do Chega Bruno Nunes fora directo: “Vai ou não vai assumir as responsabilidades legais e demitir-se?” O deputado citou a legislação alegando que os altos cargos públicos ficam impedidos de celebrar contratos com familiares, o que leva a que neste caso haja uma “clara incompatibilidade”. “O parecer da PGR é claro e diz que não é ilegal, mas sugere ponderação cuidadosa. A nível ético, está tudo errado. Ou vão mandar apagar as minhas declarações?” A ministra respondeu não ter “nada a declarar”.

Entretanto, o Chega anunciou que vai pedir à comissão de Transparência que analise se há ou não alguma incompatibilidade ou impedimento neste caso. Também vai requerer uma investigação ao Tribunal de Contas para apurar se os fundos foram atribuídos às duas empresas do marido da ministra de forma regular ou se existiu “alguma interferência do Governo” e se no processo houve “alguma espécie de ilegalidade ou de irregularidade”. André Ventura defendeu que perante este “conluio familiar”, Ana Abrunhosa deve demitir-se por “incompatibilidade grave e violação ética dos seus deveres de governante”.

Para além de ter acusado o PS de ser “antidemocrático”, Carlos Guimarães Pinto fora ainda mais insistente com a ministra: “A senhora ministra tem conhecimento privilegiado sobre a forma de aplicação dos fundos, tem a tutela sobre os organismos que seleccionam os projectos e que distribuem os fundos. Tenho-a como uma pessoa séria e ética. Não considera que existe um claro conflito de interesses e ético quando o seu marido recebe fundos europeus atribuídos por organismos que a senhora tutela?”

Perante nova recusa da ministra em responder, Carlos Guimarães Pinto respondeu no seu lugar: “Existe um profundo conflito ético nesta situação e acho que até ao final do dia tem duas opções: ou a empresa do seu marido devolve os fundos (infelizmente temos um tecido empresarial viciado em fundos europeus) ou a senhora ministra se demite.” O deputado ainda foi repreendido pela presidente da comissão por insistir em perguntas a que a ministra se recusava a responder, mas o liberal replicou estar no uso do seu tempo.

Mais tarde, foi a vez de o bloquista José Soeiro se referir ao caso, mas apenas sobre o parecer da PGR que admitiu ser legal, embora eticamente questionável, que o marido da ministra fosse beneficiário de fundos europeus: “À questão ética cabe à senhora ministra responder; à questão legislativa, a Assembleia da República deve responder a esse problema identificado na lei.” E prometeu que o Bloco irá apresentar uma proposta nesse sentido.

PS já fala em rever a lei

Entretanto, os partidos desdobraram-se em declarações sobre o caso. Depois de ter pedido desculpa formalmente pela atitude da sua deputada - , o PS anunciou que tenciona “aprimorar” a lei dos impedimentos de políticos nas regras sobre a transparência no exercício de funções públicas e contratação pública. O que vem ao encontro do que o Bloco já tinha adiantado na comissão.

Em resposta à ministra que lhe pediu um parecer, a PGR admitiu haver “obscuridade da lei” na questão de um cônjuge de um governante que tenha tutela sobre as entidades que decidem a atribuição de fundos comunitários poder ter acesso a esses apoios, e sugeria que o legislador - neste caso o Parlamento - ponderasse “cuidadosamente” o assunto.

“A lei pode ser aprimorada e melhorada, mas de tudo o que foi relatado, tudo o que tem sido discutido, a legislação actual garante que não só não há intervenção dos membros do Governo ou qualquer outro responsável político quando estão em causa matérias relativas a seus familiares próprios, como, para além disse, estes [familiares] são objecto de inibições”, afirmou o vice-presidente da bancada do PS citado pela Lusa.

Pedro Delgado Alves vincou a disponibilidade do PS para “aprofundar as garantias” de transparência e procurou afastar o foco de uma eventual actuação de Ana Abrunhosa enquanto ministra mas “mas funções que ao longo da sua vida de serviço público desempenhou em que, potencialmente, se entrecruzava com matérias que diziam respeito a fundos comunitários”. Ana Abrunhosa foi presidente da CCDR Centro por nomeação de Pedro Passos Coelho, mas, ao contrário da referência do dirigente socialista, a questão agora levantada não é relativa a esse tempo mas sim já durante a actuação como ministra.

Do “rolo compressor da maioria” à “censura"

Presente na audição da ministra, o deputado do PSD Luís Gomes preferiu insurgir-se contra o PS nos corredores. “O PS quis apagar declarações de deputados, que usaram o seu tempo regimental, e soubemos o que foi o regresso do lápis azul à democracia e ao sistema político português"​, criticou o vice-presidente da bancada social-democrata citado pela Lusa, considerando o episódio revelador do “rolo compressor da maioria”.

O presidente do partido, Luís Montenegro seguiu a argumentação escrevendo no Twitter que “apagar intervenções de deputados no Parlamento (...) é próprio das ditaduras. Este PS não tem emenda. Em seis meses já mostrou que não é digno da maioria que o povo lhe concedeu.”

O líder parlamentar da IL, Rodrigo Saraiva, contou que levou este assunto à conferência de líderes, onde o presidente da Assembleia da República se comprometeu a averiguar junto da comissão de nada seria apagado - e Pedro Delgado Alves também pediu logo desculpa. “Consideramos que este assunto está sanado, está resolvido e registamos positivamente esse reconhecimento do PS de uma má atitude de uma sua deputada (...) O que nos preocupa é que, quando uma deputada do PS tem o à vontade para esta atitude, isso é um sintoma da forma como o PS governa e gere a coisa pública. Este episódio deve servir ao PS para fazer uma reflexão sobre a sua prática, que permite que deputados seus se achem donos disto tudo”, avisou Rodrigo Saraiva.

Depois de José Soeiro se ter insurgido contra o pedido da deputada do PS, Mariana Mortágua foi mordaz: “As declarações da deputada do PS seriam graves se não fossem disparatadas. Nenhum deputado tem o poder para apagar actas daquilo que se passa em comissões (...) E ainda bem que o é; seria um ataque à democracia se assim não fosse.”

O PCP e o CDS optaram por usar o processo dos fundos como alvo. “Os processos devem ser claramente investigados e devem ser esclarecidos para que seja cabalmente demonstrada a regularidade e o rigor”, defendeu o comunista Bruno Dias, que pediu “transparência e integridade” e “que se cumpra a lei, porque ela é para todos”. Já o presidente centrista e eurodeputado Nuno Melo anunciou ter questionado a Comissão Europeia sobre um eventual conflito de interesses e, por isso, “uma ilegalidade e incompatibilidade” na atribuição de verbas do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) a empresas do marido da ministra.

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