Criar imagens com inteligência artificial: nada de novo, tudo de novo

Tratando-se de uma tecnologia nova, a relação com as imagens irá mudar. Regulamentos de concursos de ilustração terão de ser revistos, porque a concorrência inesperada com imagens produzidas com estas ferramentas já se tornou polémica.

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DeepMind/Unsplash

Escreve-se uma descrição com o nome de um artista, um objecto, um lugar ou um estilo, carrega-se na tecla enter, e a imagem aparece. Com novos programas de inteligência artificial, DALL·E, Midjorney, Imagen e tantos outros, tornou-se possível descrever sonhos e esperar, num minuto, que a imagem se forme.

Parece inédito, usar ferramentas que antes estavam confinadas ao sonho: como reagiriam os pintores e escritores do surrealismo se tivessem tido acesso a estes programas? André Breton, no Manifesto do Surrealismo, expressou o desejo de ter acesso aos sonhos, interrompidos numa noite de sono, para resgatar as imagens do subconsciente, esse inesgotável repositório a que aludia Max Ernst.

Para muitos desses artistas, dar imagens aos sonhos, à distância de uma breve descrição, seria um sonho em si mesmo. Mas nem tudo é novidade. Ou melhor, as ferramentas são novas, mas questões levantadas são as mesmas que acompanham o mundo da arte com o avanço da tecnologia. Como na invenção da fotografia, em que pintura se reinventou e o fotógrafo passou a enquadrar e a compor as imagens, ajustando também o desempenho da máquina fotográfica. Ou como nas pinturas feitas por robôs programados por Leonel Moura, no seu robotarium, que faziam chegar um marcador de tinta a manchas detectadas por sensores de luz.

Deste Deus ex machina saem formas de colaboração tecnológica cada vez mais complexas, ao ponto de parecerem diluir os limites da decisão humana. Paradoxalmente, continua a existir uma iniciativa do utilizador, e ainda um processo de escolha, nas várias fases em que a imagem ganha detalhe. Desta vez, contudo, há um sistema que aprende com os pedidos, ou prompts, e os resultados aproximam-se cada vez mais da expectativa do utilizador.

Tratando-se de uma tecnologia nova, a relação com as imagens irá mudar. Regulamentos de concursos de ilustração terão de ser revistos, porque a concorrência inesperada com imagens produzidas com estas ferramentas já se tornou polémica. E, tal como a pintura se reinventou depois da invenção da fotografia, também marketeers, concept designers, e até realizadores de cinema poderão aprender a utilizar inteligência artificial para criar novas imagens e influenciar tendências.

Quando uma simples descrição dá acesso a milhões de parâmetros e um repositório inquantificável de imagens, a ferramenta já é demasiado relevante para ser ignorada. Como é óbvio, fica ainda mais arriscado prever tendências, porque assim surgem novos níveis de complexidade. O ritmo de produção de imagens, espaços imaginados, retratos hiper-realistas, torna-se ainda mais frenético, mais imediato, o que certamente terá implicações no processo criativo, seja em que área for. Da arquitectura à moda, sem esquecer a literatura, o cinema e a construção de cenários e personagens de jogos, é difícil imaginar uma área cultural que fique imune às novas ferramentas.

Com a generalização da inteligência artificial na criação de imagens, há novos riscos, impossíveis de ignorar: vão do desconhecimento da origem dos dados à vulgarização de formas de expressão artística. Mas quem quiser explorar as novas ferramentas, sonhando, libertando o subconsciente e juntando referências artísticas de forma consciente, chegará a novos mundos. É claro que o contrário também acontece, já que a imaginação também se molda aos critérios da inteligência artificial. Tivesse Dali acesso ao DALL·E, e a história da arte teria sido diferente.

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