Entre adultos e crianças: horizontalidade ou verticalidade?

Mais do que a horizontalidade nas relações entre os adultos e as crianças baseadas na permissividade, suscita particular preocupação a inversão das posições, com as crianças no topo e os adultos na base da hierarquia.

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Resgatar o significado arquetípico do senex significa ter adultos que não tenham receio de verticalizar a sua relação com as crianças DR/charlesdeluvio

Viemos de um tempo em que as relações entre os adultos e as crianças eram baseadas na verticalidade: em cima, estavam os adultos e, em baixo, as crianças, com posições bem definidas e estáticas, organizadas de uma forma rígida e imutável. Tanto na família quanto na escola, cabia aos adultos mandar e às crianças obedecer, de acordo com uma hierarquia na qual os mais velhos detinham inequivocamente o poder, recorrendo, se necessário, à punição e ao temor.

Nas últimas décadas, este balanço de forças foi alterado, com muitos aspetos positivos, que permitiram tornar a relação entre os adultos e as crianças mais próxima, explicitamente afetuosa e cúmplice, favorecendo um maior envolvimento dos adultos no crescimento das crianças. Mas esta mudança também está na origem de alguns equívocos, com consequências inquietantes, decorrentes da excessiva horizontalidade da relação entre gerações, que resulta, muitas vezes, numa excessiva permissividade na educação infantil.

Esta questão da permissividade não é nova e já fez correr muita tinta, nomeadamente desde o tempo do pedopsiquiatra João dos Santos. No programa da Rádio Comercial Se não sabe porque é que pergunta?, o jornalista João Sousa Monteiro colocou-lhe a seguinte questão: “Uma tolerância excessiva por parte dos pais não poderá ser tão destruidora para a criança como uma falta importante e continuada de amor, de atenção? A tolerância excessiva não pode ser sentida pela criança como uma espécie de vácuo, ambígua, porque os pais de facto estão lá, mas não estão?”. As palavras de João dos Santos são sábias: “Os pais excessivamente bons são tão perigosos para a segurança da criança como os pais excessivamente maus. Estes extremos têm como resultado uma espécie de castração, quer dizer, de falta de poder. A criança tem a necessidade de se confrontar com os pais.”

Mas, mais do que a horizontalidade nas relações entre os adultos e as crianças baseadas na permissividade, suscita particular preocupação a inversão das posições, com as crianças no topo e os adultos na base da hierarquia. As relações entre adultos e crianças assentes na verticalização com as posições invertidas são responsáveis por situações de omnipotência infantil, nas quais as crianças detêm um poder desmesurado sobre os seus pais, até com alguma tirania. Nestas famílias, são os pais que passam a ter receio do poder das crianças, exercido através de birras, chantagens e amuos, preferindo ceder a contrariar os filhos, de modo a tentar controlar os danos colaterais.

No entanto, ao invés de controlar os danos colaterais, esta atitude temerosa e permissiva mais não faz do que reforçar o poder infantil, mantendo a família refém de um padrão que não é saudável nem tão pouco positivo para o desenvolvimento da criança. Quando as crianças percecionam insegurança, fragilidade, hesitação ou falta de assertividade por parte dos adultos, testam incessantemente os limites para perceberem até onde podem ir. Este desafio constante corresponde, frequentemente, a uma tentativa das crianças para que lhes digam onde devem parar.

Muitos fatores podem concorrer para a alteração deste paradigma. Pode ser porque a idade dos pais aumentou, porque o primeiro filho é muito desejado, porque há muitos filhos únicos, porque os pais pensam muito na educação das crianças, porque trabalham demais, porque têm tempo de menos, porque se culpabilizam, porque leem muito sobre educação, porque se questionam, porque se sentem inseguros ou, simplesmente, porque querem dar aquilo que julgam ser o melhor aos seus filhos.

Para juntar a estes fatores, a disseminação destes modelos educativos poderá ser explicada pela exacerbação da vivência unilateral da estrutura arquetípica que Carl Jung denominou como puer, associando-a ao arquétipo da criança, que se opõe ao arquetípico senex, baseado no velho. Relacionadas com expressões humanas de vivência do tempo, estas estruturas arquetípicas, quando equilibradas, contribuem para uma vivência positiva; porém, quando polarizadas, são vividas de forma negativa.

De acordo com a psicóloga e analista junguiana Dulcinéa Monteiro a sociedade atual está impregnada dos valores puer em todos os seus aspetos, o que, de uma forma unilateral, tende a negar e a invalidar o seu polo oposto, o senex. “Podemos, numa análise da cultura atual, dizer que saímos de uma época de dominância dos aspetos negativos do senex (rigidez e autoritarismo) e caímos na outra polaridade, o cultivo exacerbado dos valores do puer (culto da eterna juventude e beleza física, falta de limites e autoridade, pressa e hedonismo, entre outros).” Neste contexto, esta psicóloga defende a necessidade de “resgatarmos o significado arquetípico do senex”.

Segundo o psicólogo James Hillman, cujo trabalho incidiu sobre a psicologia arquetípica, as famílias com caraterísticas puer têm dificuldade em assimilar e, consequentemente, em transmitir os valores senex. Relacionados com a imposição de limites, estes valores são, na sua perspetiva, uma expressão de amor e de cuidado, representando uma função paterna fundamental para a estruturação do ego. “O que fundamentalmente falta na estrutura puer é o contingente psíquico para refrear, conter, reter, estancar, de modo a gerar um momento de reflexão”.

Resgatar o significado arquetípico do senex significa ter adultos que não tenham receio de verticalizar a sua relação com as crianças, exercendo a sua autoridade com uma firmeza tranquila. Esta verticalização da relação entre adultos e crianças não tem de ser baseada no autoritarismo, mas sim investida de autoridade, naturalmente construída através do poder de modelagem do exemplo e da congruência, do diálogo e da capacidade de escuta, da empatia e da flexibilidade, mas também da assertividade e da definição de limites claros.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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