BE quer taxar lucros excessivos da banca para apoiar famílias com crédito à habitação

A coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, elege como prioridade o combate ao aumento das rendas de habitação e acusa o PS de recuar na promessa de subida dos salários da Função Pública.

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Catarina Martins entrevistada esta semana nas instalações da Renascença Daniel Rocha

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Em entrevista ao programa Hora da Verdade, do PÚBLICO/Renascença, a líder do Bloco de Esquerda (BE) defendeu taxar não só as empresas com lucros extraordinários, mas também os lucros da banca. Quanto ao futuro do Serviço Nacional de Saúde (SNS), Catarina Martins defende a ex-ministra da Saúde Marta Temido e sublinha que os ministros vão até onde os governos os deixam.

O Parlamento retoma esta semana com os debates do PCP e do PSD sobre medidas de combate à inflação e o programa de emergência social dos sociais-democratas. Onde é que anda o BE?
A debater a habitação muito em breve, nomeadamente as prestações das casas, que estão a aumentar com a subida dos juros. Portugal tem um problema muito grave de inflação na habitação, no arrendamento e no preço das casas. Isto não vem deste ciclo, já vinha de antes, mas está a ser agravado. Com o aumento das taxas Euribor, há muitas famílias a sentirem uma grande dificuldade com o aumento da prestação da casa, que se junta às dificuldades que as famílias têm no arrendamento.

Em relação à Euribor, o que é que o BE tem para propor?
Vamos propor medidas que estão ao alcance do Governo em Portugal. Espero que todos os partidos possam vir a jogo juntamente com o Bloco de Esquerda. Queremos garantir que as casas de habitação própria permanente não podem ser penhoradas. E achamos que é possível apoiar as pessoas que têm crédito à habitação através dos próprios lucros excessivos da banca, que teve neste ano e meio lucros de 2800 milhões euros, já depois de pagar todos os impostos. Há aqui uns lucros muito avultados do sistema financeiro que podem e devem reverter para programas que apoiem as famílias com crédito à habitação.

O primeiro-ministro falava na possibilidade de abater créditos e deduzir no IRS. É uma hipótese?
É muito poucochinho. Para uma família que está aflita com a prestação da casa, toda a ajuda que vier é bem-vinda. Em prestações que estão a aumentar 100 euros por mês, dizer que se vai reduzir os juros no IRS é uma gota de água. As famílias não conseguem nem chegar ao fim do mês. Não queremos uma situação de incumprimento generalizado, que é péssimo para as pessoas, que perdem a sua casa, e para a economia como um todo. É preciso agir já sobre as prestações das casas e é preciso agir noutras matérias de que temos falado para baixar o preço da habitação. Portugal tem preços da habitação proibitivos. Comparam muito mal do ponto de vista internacional, tendo em conta o poder de compra e os salários no nosso país. Há outras medidas com as quais é preciso avançar para baixar os custos da habitação.

Esta semana ouvimos o primeiro-ministro falar em relação aos lucros extraordinários das empresas. Podemos esperar que o BE apresente alguma proposta neste sentido por altura do OE?
O primeiro-ministro português tem sido ultrapassado pela esquerda por líderes de direita de vários países europeus e até da Comissão Europeia. Ouço António Costa a falar do imposto sobre os lucros excessivos e parece que estou a ouvir o advogado da Galp. Os lucros das maiores empresas portuguesas subiram 40% no ano passado e 73% este ano depois de pagos todos os impostos. Há aqui realmente um problema de haver quem aproveite a situação internacional para inflacionar os preços. E, sim, é preciso desencorajar e taxar.

António Costa diz que não exclui, só que ainda não decidiu.
Cada dia que passa sem decidir é mais um dia inútil ou fica mais difícil ter uma medida com efeitos práticos. Porquê? A medida de taxação de lucros excessivos compara os lucros de um período com o período anterior. Se o Governo nunca mais a aplica e empurra para a frente, vai comparar períodos de lucros excessivos com períodos de lucros excessivos e dizer que “afinal está na mesma”. Cada momento que passa sem taxar estes lucros é um momento que está a premiar estas práticas especulativas. Além disso, está a sair dinheiro de Portugal. Estes lucros excessivos estão a ser distribuídos por quem põe o seu dinheiro nos offshores desta vida e em Portugal não fica nada.

Isso significa que no futuro teremos também de criar um mecanismo caso existam perdas inesperadas?
Essa pergunta não tem sentido, porque as empresas, na verdade, tinham toda a capacidade neste momento para se estarem a capitalizar, caso tenham medo do futuro. E não estão. Estão só a distribuir dividendos como nunca. Essa é uma falsa questão para tentar desviar a atenção do essencial. Neste momento, há um assalto sobre os salários e pensões e há quem esteja a ter os chamados “lucros caídos do céu” (o windfall tax), e o Governo português é o último governo do mundo a agir.

Seria prudente regressar ao lay-off?
As empresas não estão minimamente interessadas nisso. As empresas querem a mão-de-obra neste momento. O maior problema das empresas neste momento são os custos da energia. Era preciso que houvesse coragem para enfrentar quem está a ganhar demais com esta crise. É preciso olhar para os números. Se nós virmos os lucros da REN, EDP e Galp juntas neste período, é mais do que todo o pacote de combate à inflação que o Governo anunciou. Só nestas três empresas, e os lucros depois de pagos todos os impostos.

Em relação aos salários da Função Pública, a Fesap já veio dizer que é inaceitável o referencial de 2%, tendo em conta que a inflação ronda os 7,4%. Qual é que deve ser o referencial?
Tem de ser a inflação. O primeiro-ministro disse que o referencial para a actualização dos salários da função pública era a inflação do ano anterior. Agora que a inflação é mais alta, afinal já não é esse o referencial. Isso quer dizer que os funcionários públicos já perderam um salário no ano e para o ano vão perder ainda mais. Quando vemos escolas sem professores ou que não há médico de família, é bom saber que é porque, pura e simplesmente, os salários neste momento são tão baixos que não pagam a renda de uma casa. É péssimo para os trabalhadores do Estado e é péssimo para os trabalhadores do privado, porque se dá um sinal a toda a economia de salários estagnados. É péssimo para os serviços públicos. Há um empobrecimento generalizado da população em Portugal feito pela inflação, com dois argumentos que são falsos. O primeiro argumento é achar que actualizar salários e pensões pode provocar inflação.

Qual é a disponibilidade do BE para conversar sobre a revisão, por exemplo, da fórmula de cálculo das pensões?
Em 2015, quando fizemos um acordo com o PS, aliás, falámos em descongelar as pensões e colocar a fórmula a funcionar.

A fórmula actual não deve ser alterada?
Não deve ser alterada para empobrecer a população. Já tivemos propostas sobre a fórmula, mas para garantir que havia um poder de compra recuperado, nomeadamente para pensionistas muito pobres. Nós sabemos que há pensões muito baixas em Portugal. Enfim, nós já tivemos posições sobre isso. Mas o que está em cima da mesa neste momento não é isso. É alterar a fórmula para baixar as pensões, não é para que possam recuperar.

Em Abril de 2019, António Costa dizia, no debate quinzenal, que em quatro anos - desde que tínhamos descongelado a lei de actualização das pensões - o Fundo de Sustentabilidade da Segurança Social se tinha reforçado numa década. O que António Costa hoje diz é exactamente o contrário do que dizia nessa altura. Afinal, a Segurança Social já não é sustentável quando se sabe que afirmou que era, e que afinal temos de cortar nas pensões. Quer dizer, tem uma visão para Portugal de salários estagnados a longo prazo e de emprego precário, de emprego informal que não faz descontos para a Segurança Social.

Só há um problema se for criado. Neste momento não há problema nenhum. A Segurança Social neste momento não tem um problema. E foi precisamente o que foi feito entre 2015 e 2019 que a tornou mais forte. O PS agora quer fazer o contrário. Eu bem sei que esta política dos truques de fazer uma coisa e anunciar outra é bem-sucedida. Aliás, o Bloco de Esquerda pagou um preço muito alto por não querer pactuar com esta política dos truques. Mas ela é absolutamente destrutiva para o país. Pode ter dado um bom resultado eleitoral ao PS, que teve a maioria absoluta que sempre quis. E é absolutamente destrutiva para a democracia, porque as pessoas nunca sabem com o que é que podem contar ou em que é que podem acreditar. E eu acho que isto é o maior dano neste momento que o PS está a fazer.

O SNS vai ter um gestor. Acredita que é esta pessoa que terá de responder aos deputados? Deverá entregar uma declaração de interesses e rendimentos no Tribunal Constitucional?
O BE defende isso para todas as pessoas que ocupem cargos de gestão de responsabilidade executiva, como é normal e como todas as democracias devem exigir. O SNS tem tido quem gere. Tem sido é o ministro das Finanças. Não era mau se a Saúde começasse a poder gerir o Serviço Nacional de Saúde.

Esta nova figura pode exercer esse papel? De fazer frente a um ministro das Finanças?
Nunca faria a maldade de achar que a ministra Marta Temido não fez o seu trabalho. Isso é uma opção de Governo. E o Governo ou decide que Saúde e Educação precisam de condições para funcionar, ou acha que não é preciso fazer investimento nenhum no país e deixa as condições degradarem-se. E a opção que é conhecida é a obsessão pelo défice. A cada ano, o Governo gaba-se de ter contraído mais o défice do que as previsões iniciais. Nunca diz qual é o custo disso. E o custo disso é um Serviço Nacional de Saúde degradado e uma escola pública degradada.

O nome de Fernando Araújo é um nome que pode fazer a diferença?
Não faria a injustiça de achar que a política da Saúde ou a crise da Saúde é provocada por uma pessoa ou outra. As condições políticas para fazer escolhas em nome do acesso à saúde, como em nome do acesso à educação, é que determinam se uma pessoa fará ou não o seu trabalho. Espero que ninguém aceite cargos sem exigir condições.

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