China, “segurança nacional” e a supressão do Estado de Direito em Macau

A lei de 2009 nunca necessitou de ser aplicada, dado que a segurança do Estado nunca foi posta em causa em Macau.

A China e o governo de Macau preparam mais um passo na asfixia do Estado de Direito e dos direitos fundamentais. O pretexto, desta vez, é a revisão da lei relativa à defesa da segurança do Estado, que visa, como em Hong Kong, silenciar a discordância e crítica políticas sob ameaça de incriminação e prisão. Será o ponto de não retorno.

Macau aprovou em 2009 uma lei de segurança do Estado assente na lei portuguesa. Está bem redigida e assegura, de forma equilibrada, os interesses de segurança e os direitos dos cidadãos. Por que motivo a pretendem, então, alterar? Por estar bem concebida. A lei de 2009 nunca necessitou de ser aplicada, dado que a segurança do Estado nunca foi posta em causa em Macau, nem nunca se ouviu qualquer sugestão de sedição, subversão, secessão ou traição. Por isso, há que ampliá-la e descaracterizá-la para que possam ser criminalizadas opiniões e não somente actos, intimidando-se a população com uma lei que passará a ser uma arma de arremesso contra a dissonância.

Para o efeito, foi lançada uma consulta pública. O governo apressou-se a dizer que aceita todas as opiniões, “desde que sejam manifestadas de forma racional” (tradução: sem criticar a proposta), pois quem se pronunciar negativamente pretenderá “travar o desenvolvimento do país e da cidade”. E mais: receia “ataques maliciosos e informações fictícias” por parte de “alguns indivíduos tendenciosos” destinados a “dificultar ou até destruir” a revisão da lei. Felizmente para o governo, a compressão de direitos tem provocado uma drástica diminuição de “indivíduos tendenciosos” residentes, contando-se os que restam pelos dedos de uma mão… É assim este novo Macau.

Em Macau não existe democracia — uma lastimável herança do período da administração portuguesa. O chefe do governo foi nomeado pela China, num simulacro de eleição em que foi o único “candidato” a ir a “votos”. Como tal, serve os interesses daqueles de que depende o Partido Comunista Chinês e não dos que deveria servir: a população de Macau. Não há justificação para alterar a lei. Mas a ser revista, diz a Lei Básica (a sua mini Constituição), caberia à RAEM (Macau) fazê-lo “por si própria”. Porém, esta revisão vem de Pequim. E Macau que a China chama “o bom aluno” cumpre.

A consulta pública revela que a lei ficará repleta de conceitos vagos e difusos, na tradição comunista, que permitirão fazer dela o que se quiser e punir quem se entender. E as normas processuais darão a faca e o queijo à polícia para investigar estes “crimes”. Nos termos do princípio fundador da RAEM, “Um País, Dois Sistemas”, Macau tem o seu sistema jurídico autónomo. Mas o governo clarificou que, nesta matéria, haverá somente “Um País”, ou seja, um só sistema: o da China. Tal indicia que a lei e a sua aplicação seguirão regras jurídicas de inspiração chinesa, em violação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), da Lei Básica e do Tratado Bilateral Luso-Chinês de 1987.

O governo esclareceu, ainda, que a nova lei visa “a responsabilização dos sujeitos que prejudicam a segurança do Estado e os seus actos”. Isto é, os crimes incidirão sobre quem prejudique, quer a segurança do Estado, quer os actos do Estado as medidas de governação. Afigura-se que passará a ser crime criticar certas leis, políticas, actos administrativos ou medidas policiais. Quem o diz é o governo.

Esta imprudência não se fica por casa. A nova lei passará a punir estrangeiros, não residentes em Macau, por actos praticados no estrangeiro contra a “segurança” da China, de Macau ou de Hong Kong. Um jornalista português poderá vir a ser incriminado e objecto de um mandado de captura internacional por um artigo crítico de actos dos ditos governos publicado em Portugal.

Em 23 de Agosto, um jornalista da Lusa perguntou ao Secretário para a Segurança se as críticas da eurodeputada Isabel Santos, co-signatária de uma Proposta de Resolução Comum (que foi aprovada) sobre a violação dos direitos fundamentais em Hong Kong e Macau, constituiriam crime ao abrigo da nova lei. O Secretário alegou desconhecer o caso (acredite quem quiser). Podia ter ficado por aí. Mas não. Logo acrescentou não afastar a possibilidade de julgar à revelia estrangeiros que cometam crimes contra a segurança, com eventual extradição... A implícita referência à Eurodeputada portuguesa que interpretou a declaração como uma ameaça é preocupante. O mesmo Secretário referiu que partilhar certos “posts” e colocar “likes” nas redes sociais não é crime, mas pode ser “muito perigoso”, sendo um comportamento que “pode revelar problemas de mentalidade e ideologia”.

Como agravante, a história recente da RAEM denota que em processos politicamente sensíveis a separação de poderes e a independência judicial colapsam, colapsando com elas o Estado de Direito. A congruência entre a lei escrita e a sua aplicação esfuma-se, sendo as leis interpretadas com o sentido que mais interessar. Foi isso que sucedeu quando um deputado e um activista foram condenados por tentarem entregar uma carta crítica ao chefe do governo ou quando 15 candidatos a deputados foram desqualificados por não serem “patriotas” (representei os visados em ambos os processos).

Leis elaboradas para atribuir e garantir direitos têm sido usadas para os restringir ou eliminar, como no caso do direito de manifestação (essencial na ausência de democracia). Por conseguinte, comparar esta nova lei com leis semelhantes de países democráticos respeitadores do Estado de direito não é convincente, pois não é previsível que Macau o respeite. Aliás, das Observações e Recomendações de 2022 do Comité dos Direitos Humanos da ONU resulta que Macau não cumpre o PIDCP.

A nova lei de segurança do Estado não é, porém, sobre segurança. É sobre a restrição da liberdade de expressão e de imprensa, e da participação cívica dos cidadãos na vida pública. O objectivo é forçar a unicidade política sob a capa de uma sociedade falsamente harmoniosa e silenciar a comunidade, dentro e fora de Macau, banindo críticas políticas aos governos da China, Macau e Hong Kong. E irá funcionar. Macau será um lugar ainda menos interessante e criativo, norteado pelo medo, onde todos se sentirão constrangidos a concordar sobre questões controversas de “interesse público” que no dialecto político local significa “interesse da governação”.

O governo de Macau parece não se abster de fazer ameaças implícitas a portugueses. A eurodeputada já reagiu. Reagirá desta vez o governo português, junto da China, da UE e da ONU, de modo a suster o desenho de uma lei que constituirá um flagrante incumprimento do PIDCP e do que China acordou com Portugal em 1987?

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