A cultura é um luxo, a menos que seja para ver os Coldplay

O dinheiro não é a razão primordial para que as pessoas não consumam cultura. A razão é, sobretudo, o valor que damos, ou não, ao usufruto da cultura.

Muito se tem falado do assalto aos bilhetes de ingresso para o concerto dos Coldplay. Apesar de o preço dos bilhetes não ser dos mais convidativos (de 65 a 150 euros), a primeira data esgotou muito rapidamente todos os lugares, o que parece contradizer os que apregoam que é o dinheiro que afasta as pessoas das iniciativas culturais. Embora muitas pessoas não tenham salários dignos, não é esta a razão principal para a falta de participação na cultura.

São vários os momentos em que, num qualquer fórum, ouvimos dizer que a cultura é cara e que as pessoas não têm o conforto financeiro suficiente para assistir a eventos culturais ou para adquirir produtos artísticos. Mas raramente as mesmas vozes assumem que é esse, a par da educação, o sector mais fulcral e essencial para o futuro da democracia.

É verdade que o salário mínimo e médio não é suficiente, quanto mais neste momento de perda de poder de compra. Mas convenhamos que os livros nos lugares cimeiros, os espectáculos que esgotam temporadas ou os concertos que atulham o Altice Arena de fãs não são conhecidos por serem baratos.

São inúmeras as iniciativas, eventos e produtos espalhados pelo território com preços de menos de cinco euros ou com entrada livre. Como detectado pelo Barómetro da Cultura 2022: Estudo Anual sobre a Percepção da Cultura em Portugal, o dinheiro não é a razão primordial para que as pessoas não consumam cultura. A razão é, sobretudo, o valor que damos ao usufruto da cultura. Se consideramos a educação como essencial ao futuro das gerações, ou a alimentação à sobrevivência da espécie, já o mesmo não parece acontecer com a cultura. E isso é um erro.

A cultura e a arte são a garantia de um futuro numa democracia plural que combata discriminações de todo o género, que questione o passado e que apresente soluções para o futuro.

Se é certo que a comida na mesa é essencial para o dia de hoje, a garantia de que no futuro continuaremos numa democracia sã, pungente e escrutinadora não me parece de somenos. É cada vez mais primordial um maior investimento no sector cultural, porque ele é central. Uma dotação orçamental praticamente nula é sinónimo de ignorar o poder da Cultura para a economia e para o futuro do país.

Para mais, a ideia de que a cultura deve ser gratuita retira-lhe valor. Se, por um lado, é compreensível o argumento de que essa gratuitidade retira barreiras ao acesso, torna-a mais “democrática”, o mesmo é contradito quando observamos iniciativas de extrema importância, baratas, com salas por encher. Ora vejamos: um espectáculo de teatro no Cacém, produzido com e pela comunidade de jovens do concelho, não é de certeza menos importante do que o grande musical produzido por Filipe La Féria.

A cultura - como a democracia - tem custos que devem ser maioritariamente abarcados pelo Estado mas também por quem dele faz parte. A ideia de que este bem cultural que estou a consumir é barato, não dá mais acesso: desvaloriza aquilo a que estou a assistir.

É através da criação e consolidação de públicos, do trabalho em comunidade e da deslocalização no território que não deixamos ninguém para trás. E é nisso que precisamos de investir. Se incluirmos a população mais marginalizada, ou excluída, na nossa prática cultural, estamos a fazer muito mais do que cultura: estamos a dar-lhes um espaço de pertença.

A escola pública tem também o dever de educar para a importância e centralidade da cultura nas nossas vidas enquanto comunidade. Se o objectivo da escola é estimular o pensamento crítico, a vida em comunidade, a cidadania ou um futuro mais verde, é a cultura que tem essas ferramentas à mão. A educação para o espanto rejeita a uniformidade, que dá ao indivíduo capacidade analítica e que nos faz procurar sempre um futuro melhor.

É a cultura que faz perdurar o passado e garante o futuro. E isso tem muito mais valor do que todos os milhares, centenas, dezenas ou cêntimos que estejamos dispostos a gastar. O que consideramos importante não é um luxo: é pão para o cérebro que nos faz caminhar.

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